Todo dia, a dinamarquesa Line Rothman pedala a caminho da aula escutando duas músicas do cantor americano Stevie Wonder. Se as canções (sempre as mesmas) acabam, significa que está atrasada. Nem adianta olhar o relógio. A jovem não entende o que aqueles números representam. Ela convive com a discalculia, condição que afeta de 3 a 6% da população mundial e se caracteriza pela dificuldade em reconhecer, calcular e lembrar fatos numéricos. É como se fosse a prima-irmã da dislexia, distúrbio que atrapalha a leitura e a escrita. Em palestra do TED, uma organização sem fins lucrativos, Line relata que não consegue contar quantas vezes a discalculia a fez chorar simplesmente porque… não é capaz de contar.
O sofrimento é compreensível. Até o problema ser descoberto, o que geralmente ocorre lá pelos 9 ou 10 anos de idade, a criança passa por maus bocados. “Pais e professores costumam achar que ela tem déficit intelectual ou preguiça mesmo”, diz o neurologista Vitor Geraldi Haase, da Universidade Federal de Minas Gerais. E o ponto fundamental é: a discalculia não tem nada a ver com inteligência, qualidade do ensino e questões motivacionais ou emocionais. “Trata-se de um transtorno do neurodesenvolvimento”, define Haase. E há evidências de que a causa tem fundo genético.
Nem todos os indivíduos discalcúlicos vão penar para entender o relógio, como Line. De acordo com José Alexandre Bastos, chefe do Serviço de Neurologia Infantil da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (SP), as repercussões dependem da área do cérebro afetada. “Tem criança que não compreende o procedimento para fazer a tabuada”, cita Bastos.
Outras, mais comprometidas, não desenvolvem noção de magnitude – na prática, esses meninos e meninas acham normal um time de 11 pessoas jogar futebol contra uma equipe de três, por exemplo. Quando a dificuldade é desse tipo, de estimar quantidades, até existe a chance de identificar alto risco para a condição antes de o pequeno ingressar na escola. “Mas isso dificilmente acontece, porque o tema é pouco divulgado”, analisa o neurologista Marco Antônio Arruda, diretor do Instituto Glia, em Ribeirão Preto, no interior paulista.
Há outros motivos para desconfiar da discalculia. A molecada pode suar para comparar maior e menor, aprender sequência numérica e diferenças entre dezena, centena e milhar, distinguir números de forma visual ou auditiva, compreender operações simples e memorizar as cifras. “É importante lembrar que apenas um terço dos casos são de discalculia pura, ou seja, não estão associados a outros transtornos do desenvolvimento”, aponta Arruda. O comum é que o distúrbio venha acompanhado de dislexia ou transtornos de aprendizagem, ansiedade e déficit de atenção e hiperatividade.
Para não deixar esse quadro passar em branco, como se fosse uma mera aversão à matemática, tanto os pais como os professores precisam prestar muita atenção na criança, especialmente no terceiro ou quarto ano do Ensino Fundamental. “Se ela tiver inteligência normal e apresentar dificuldades graves e persistentes nos aspectos mais básicos da aritmética, dá para pensar na possibilidade de discalculia”, reforça Haase.
Se uma avaliação neuropsicológica confirmar o problema, é hora de encará-lo. Como não existe remédio para discalculia, o tratamento se baseia em um acompanhamento pedagógico diferenciado, capaz de amenizar a luta com a matemática. “Se a autoestima estiver abalada, aí vale buscar apoio psicológico também”, indica Bastos.
Ao descobrir e intervir rapidamente, a criança tem seu sofrimento amenizado. Ora, se reparar bem, o mundo é feito de números. Eles estão nos preços dos produtos, no relógio, no celular, no momento de digitar a senha do cartão de crédito… Em sua palestra, a jovem Line revelou que só sabe a data de seu aniversário porque os outros a lembram. Flagrar e contornar a discalculia é como dar sentido às coisas mais básicas da vida.
Quando o diagnóstico não vem
“Não identificar a discalculia pode trazer consequências dramáticas para o indivíduo no futuro”, ressalta o neurologista Marco Antônio Arruda. Além de baixa autoestima, há um grande risco de ocorrer abandono escolar. Daí, por causa da instrução limitada, a pessoa tem menos oportunidade de se sentir realizada lá adiante. “Adultos com mau desempenho em aritmética estão mais expostos a desemprego ou baixos salários, bem como a problemas psiquiátricos, a exemplo de ansiedade, depressão e comportamentos antissociais”, nota Vitor Haase.