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Tome Ciência!

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A ciência faz toda a diferença para salvar vidas e proteger nossa saúde. Entendê-la é preciso. A jornalista Chloé Pinheiro e cientistas convidados se debruçam sobre os bastidores dos estudos e das políticas públicas para trazer notícias e reflexões exclusivas
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Da física atômica, uma possível cura para a doença de Chagas

Pesquisadores identificam três moléculas que podem dar origem a novas drogas para uma mazela negligenciada, que afeta milhões de brasileiros

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 19 ago 2021, 19h02 - Publicado em 18 ago 2021, 16h04
doença de chagas
O Sirius é o maior empreendimento científico do Brasil, usado em estudos de diversas áreas do conhecimento.  (Imagem: Divulgação CNPEM/Divulgação)
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O uso de um acelerador de partículas, uma das máquinas mais complexas já feitas pelo homem, para descobrir tratamentos contra uma doença negligenciada, que atinge mais pessoas pobres e para a qual não existem remédios muito bons, é a história perfeita para o primeiro post do Tome Ciência!

Este novo blog é um espaço para valorizar e discutir avanços científicos em prol da saúde pública. Com a pandemia de Covid-19, ciência virou papo de boteco (virtual, esperamos), e, de repente, todo mundo teve que lidar com termos como RNA, estudo fase 3, placebo, teste in vitro, variante, sequenciamento genômico e por aí vai. 

Só que não estávamos nada preparados para isso. Essa falta de conhecimento sobre o método científico, que, mais do que isso, é um jeito diferente e desconfortável de pensar, é um dos fatores que abrem caminho para a desinformação e para as fake news. Eis aí uma pandemia tão drástica quanto a do coronavírus, com efeitos terríveis para nossa saúde

Como escreveu o astrônomo Carl Sagan, construímos uma civilização em que os elementos mais cruciais, da agricultura à medicina, passando pelo voto, dependem profundamente de ciência e tecnologia, mas também criamos uma situação em que quase ninguém as entende. “É uma receita para o desastre”, ele crava em seu livro O Mundo Assombrado pelos Demônios (Companhia das Letras).  

Ora, se eu não entendo como as vacinas foram feitas em tão pouco tempo, como irei confiar nelas? E, se alguém em quem acredito me disse que um remédio funciona, por que eu deveria desconfiar? 

Nosso intuito, portanto, é traduzir esses temas complicados e mostrar, na prática, por que é tão importante defender e compreender a ciência. Nada melhor para iniciar essa jornada do que um exemplo positivo e brasileiro. Sem mais delongas, vamos a ele! 

A ideia de matar um parasita de fome 

A doença de Chagas, transmitida pela picada de insetos ou pelo consumo de alimentos contaminados, não é muito falada hoje em dia, mas ainda é uma baita dor de cabeça no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, são 4 milhões de infectados e 8 mil mortes ao ano no país, sem contar a subnotificação. 

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LEIA TAMBÉM: Os desafios para vencer a doença de Chagas, um problema negligenciado

Combater o Trypanosoma cruzi, parasita causador do mal de Chagas, é um desafio porque muitas vezes a pessoa nem percebe que foi infectada. A fase aguda da infecção provoca apenas uma febre que vai e volta. Depois, o bichinho se esconde nos tecidos do corpo, em especial no coração. 

“Só anos depois a pessoa começará a ter problemas, e aí o único medicamento disponível praticamente não funciona mais. A eficácia do tratamento cai de 90% para 30% nesse cenário”, conta o pesquisador Artur Cordeiro, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), localizado no Centro Nacional de Pesquisa em Energias e Materiais (CNPEM). 

Cordeiro e sua equipe estudam desde 2010 os mecanismos que levam à doença, um conhecimento fundamental para melhorar o tratamento, que hoje é pouco específico: um remédio dos anos 1960, que ataca o parasita, só que também causa danos ao organismo.

Para mudar essa história, o time conta com uma estrutura privilegiada no CNPEM, incluindo o Sirius, o acelerador de partículas brasileiro, a maior e mais cara empreitada científica da história do país. 

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A máquina utiliza um anel de 518 metros de extensão para gerar uma quantidade enorme de energia, que produz a luz síncrotron, uma espécie de raio-x muito potente, capaz de enxergar partículas atômicas e subatômicas, as menores unidades de matéria que existem.  

Para ter ideia do quão pequenas elas são, usemos a escala nanométrica. Uma bola de tênis, nessa classificação, mede 1 milhão de nanômetros. Um átomo, 0,1 nanômetro. Foi nesse nível de profundidade que eles estudaram o Trypanosoma cruziEsse estudo em específico foi feito no acelerador UVX, que foi substituído pelo Sirius, e também no Diamond, que fica no Reino Unido.

Com essas super máquinas, os cientistas descobriram os detalhes uma proteína importante para sua sobrevivência, a enzima málica. “Ela participa do metabolismo de aminoácidos, que são usados como combustível para que o parasita siga se multiplicando dentro das células humanas”, conta Cordeiro. 

Depois que é flagrado pelo sistema imune, naquela fase inicial da doença, o Trypanosoma, que até então passeava livre pela circulação, se alimentando de glicose, se esconde nas células, passando a obter energia dos aminoácidos por meio da enzima málica. 

Ao inibir a ação da proteína com um medicamento, portanto, pode ser possível matar o intruso de fome, e assim, impedir os estragos provocados pela doença. Havia, contudo, um problema: as células humanas também têm a tal enzima málica. 

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“Com o Sirius, pudemos enxergar quais eram as diferenças entre elas, o que permitirá que as novas drogas sejam desenhadas para se ligar a esse alvo somente e, portanto, provoquem menos efeitos colaterais”, explica o farmacêutico Gustavo Mercaldi, outro envolvido na pesquisa.

Os potenciais novos medicamentos chegaram ao LNBio para serem testados recentemente, com uma mãozinha da indústria.

Abrindo a caixa de Chagas 

Foto de cientista segurando placa para realização de exames
A técnica de triagem molecular permite testar milhares de moléculas. (CNPEM/Divulgação)

O conhecimento profundo do funcionamento do parasita caiu como uma luva quando a farmacêutica GSK dividiu com uma rede de cientistas do mundo a Chagas Box. Trata-se de um conjunto de 200 moléculas desenvolvidas pela empresa que poderiam ter alguma ação contra o parasita. 

“Elas foram pré-selecionadas de um banco com mais de 2 milhões de moléculas, usando uma tecnologia de triagem molecular que permite testar, de uma vez, milhares de candidatas em células infectadas pelo parasita”, conta Cordeiro. 

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O método de ponta, chamado de high-throughput screening (HTS), está disponível também no LNBio. Assim, foi possível conduzir uma prova mais específica, não contra a célula inteira, mas contra ações específicas do parasita: neste caso, a atividade da enzima málica e outros alvos que a equipe já tinha em mente. 

+ LEIA TAMBÉM: De pandemias a infartos, os riscos das mudanças climáticas para a saúde

Pouco mais de 1% das integrantes da coleção passaram no novo teste. “Descobrimos que essa proteína é fortemente inibida por três moléculas, e essa ação, por sua vez, impede a replicação do Trypanosoma”, destaca Mercaldi. Isso não só confirma que a enzima é mesmo importante para o parasita, como abre alas a novos medicamentos, mais seguros e eficazes. 

Os achados foram publicados no periódico Infectious Diseases, da American Chemical Society. Muitos estudos deverão ser feitos para confirmar esse potencial, mas essa robusta estrutura tecnológica dá um baita pontapé inicial, que pode aumentar as chances de sucesso. 

A busca por um tratamento eficaz para a doença de Chagas passou por um revés recente, que mostra a complexidade do processo de encontrar um medicamento para uma enfermidade do gênero. “Havia muita esperança em um antifúngico, o posaconazol, que demonstrava inibir uma outra proteína do Trypanosoma e avançou bem nas pesquisas, mas acabou falhando nos últimos testes com humanos”, conta Cordeiro. 

A enzima málica pode se tornar, depois dessa descoberta, uma nova promessa para lidar melhor com a condição, que é endêmica em 21 países das Américas.

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Trabalho em conjunto 

Desenvolver fármacos é um processo caro, demorado e com altas chances de dar errado, justamente por ser tão complexa a interação entre fármaco e corpo humano. Para as chamadas doenças negligenciadas, que atingem áreas mais pobres do globo, a expectativa de retorno de investimento é baixa, logo o interesse também é menor. 

Tecnologias como as utilizadas no LNBio são uma saída para otimizar os estudos, em grande parte financiados pelo poder público, mas a coisa andou mesmo quando a indústria disponibilizou suas moléculas. O compartilhamento de informações aconteceu dentro da iniciativa WIPO, uma rede internacional de propriedade intelectual capitaneada pela Organização das Nações Unidas (ONU)

Ela permite que cientistas credenciados testem compostos cedidos por fabricantes, que mantém a propriedade intelectual, mas não necessariamente comercializarão e levarão os estudos adiante depois. “Outras farmacêuticas têm acesso e podem desenvolver o medicamento, se desejarem”, avisa Cordeiro. 

O desafio agora será arrumar quem banque as próximas etapas: mais testes em laboratórios, depois em animais e, por fim, em humanos. Mas a iniciativa colaborativa internacional pode servir de inspiração para os empresários nacionais, por que não? A indústria farmacêutica aumentou seus lucros na pandemia, mas a área de pesquisa e desenvolvimento ainda é incipiente na maioria delas. 

“Temos capacidade de produzir medicamentos aqui, mas poucos foram realmente feitos do zero no Brasil. Falta o elo entre a pesquisa feita na universidade e a indústria”, completa o professor.

A Covid-19, a perspectiva de mais doenças infecciosas por conta das mudanças climáticas e os milhões de infectados anualmente pela doença de Chagas estão aí para mostrar que passou da hora de construir essas pontes. 

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