Roseana Murray: como está a escritora que sobreviveu ao ataque de pitbulls
Na tragédia, ela perdeu a orelha direita, teve o rosto desfigurado e sofreu lesões no braço esquerdo

Atacada por três cães da raça pitbull há pouco mais de um ano, a escritora Roseana Murray, de 74 anos, gosta de dizer que foi salva duas vezes: a primeira, no sentido próprio, e a segunda, no figurado.
O primeiro salvamento, o literal, ocorreu em Saquarema, na Região dos Lagos, quando o maratonista Eduardo Neves, de 59 anos, afugentou os cachorros com um cabo de vassoura. O segundo resgate, o metafórico, aconteceu em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, no Hospital Estadual Alberto Torres (HEAT), quando ela resolveu transformar sua dor em poesia. “A literatura salva”, sorri.
Naquela sexta-feira, 5 de abril de 2024, Roseana se preparava para ir à academia quando, por volta das seis da manhã, ouviu os latidos na casa ao lado. “Nossa, estão soltos!”, pensou, assustada. “Será que vou?”. Na dúvida, abriu o portão devagar.
Dali a pouco, na rua de paralelepípedos, viu os três cães, raivosos, avançando em sua direção. “Socorro, vou morrer!”, gritou. “Não havia ninguém na rua para me socorrer”, recorda.
Minutos antes, Eduardo tinha sido alertado por uma moradora para não correr pela rua perto da Praia do Gravatá: três pitbulls à solta poderiam atacá-lo. Mas, ele mudou sua rota ao ouvir os gritos de Roseana.
Depois de socorrê-la, telefonou para o Corpo de Bombeiros, que mandou uma viatura até o local. De lá, Roseana foi levada, de helicóptero, para o Alberto Torres, a 72 km de distância. “Cheguei ao hospital quase morta”, diz.
Roseana Murray foi submetida a incontáveis cirurgias, tanto estéticas quanto reconstrutivas. Quando recobrou a consciência, foi informada pelos médicos de que, por causa do risco de sangramento, seu braço direito teve que ser amputado. Na tragédia, ela também perdeu a orelha direita, teve o rosto desfigurado e sofreu lesões no braço esquerdo. “Foi um milagre eu ter sobrevivido”, avalia.
Para sobreviver ao trauma, Roseana teve a ideia de escrever um livro infanto-juvenil. Rabiscou as primeiras linhas, ainda no leito da unidade de terapia intensiva (UTI), no bloco de notas do celular, mas, a princípio, não gostou do que escreveu. “Mãe, coloca teus netos na história”, sugeriu o filho André. “Eles vão te ajudar!”.
“Se não fosse a escrita, eu teria caído num buraco muito profundo”, acredita. “Foi como se eu tivesse reconstruído meu braço com palavras”.
+Leia também: Por que ler faz bem à saúde?
No livro O Braço Mágico (Estrela Cultural – Clique para comprar*), ilustrado por Fernando Zenshô, Luís e Gabi, de 15 e 11 anos, viram anjos que ajudam a avó a superar a perda do braço. “Luís tocava guitarra e Gabi fazia camisas coloridas. Era a maneira de eles dizerem que a amavam”, escreveu.
O livro é dedicado, entre outros, ao maratonista Eduardo, “o primeiro anjo”, e ao Hospital Estadual Alberto Torres, do SUS, “que salvou minha vida”.
“Pouco mais de um ano depois, o que ficou foi um sentimento de gratidão muito grande por ter permanecido viva”, afirma Roseana. “Nunca senti pena, revolta ou tristeza. Nunca passou pela minha cabeça: ‘Por que eu?’. Recebi um tsunami de amor do Brasil inteiro. Isso ajudou na minha recuperação”.
Lute como uma poeta
Treze dias depois de internada, Roseana Murray recebeu alta. Deixou o hospital sob aplausos de médicos e enfermeiras que vestiram uma camiseta branca com a estampa de seu rosto. Em casa, ela participa de sessões de terapia e de fisioterapia. A parte mais difícil, diz, é conviver com a dor fantasma. O braço direito não está mais lá. Mas, é como se estivesse. “A dor vai passar”, resigna-se.
Por coincidência, Roseana Murray recebeu alta no dia 18 de abril. Nesta data, comemora-se o Dia Nacional do Livro Infantil. Desde 1980, quando publicou Fardo de Carinho, seu primeiro título voltado para os pequenos, escreveu mais de 100 livros, entre impressos e digitais, a maioria de poesia.
Ganhou, entre outros prêmios literários, o da Academia Brasileira de Letras, em 2002, por Jardins, ilustrado por Roger Mello.
O sonho de ganhar uma nova prótese
Em seu mais recente livro, Roseana Murray fala do sonho de ganhar um braço biônico azul. Até ganhou um, que apelidou de ‘Blue’, mas não se adaptou à prótese. “Muito pesada”, lamenta.
O peso da prótese depende, em parte, do material de que ela é feita. Há modelos de alumínio a titânio – no passado, houve de madeira e couro. Um dos materiais mais usados atualmente é a fibra de carbono: mais leve, flexível e resistente.
“Em geral, um braço biônico não é mais pesado do que um braço humano”, explica o fisioterapeuta Anderson Nolé, diretor da BioniCenter. “Se o encaixe está bem acoplado ao membro remanescente, a sensação de peso é pequena. Mas, se está frouxo ou apertado, pode incomodar o paciente”.
Já existe uma técnica para encaixe da prótese no paciente chamada osteointegração. Através de uma cirurgia, o médico implanta no osso do membro remanescente – daí seu nome – uma haste intramedular.
Em vez de encaixar a prótese no coto do paciente, encaixa no pino de titânio. “Essa técnica aumenta a amplitude de movimentos e, também, reduz o risco de não adaptação da prótese”, explica Nolé.
Felizes aniversários!
No dia 22 de novembro, Roseana sofreu outro baque: o marido, o jornalista espanhol Juan Arias, de 92 anos, morreu de insuficiência renal. Os dois se conheceram no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o popular Galeão: ele viajava para a Espanha e ela para Alemanha. Viveram juntos por 27 anos. “Sabia que, quando ele partisse, não aguentaria ficar sozinha em Saquarema”, diz.
No finalzinho do ano, os filhos, André e Guga, decidiram levá-la para Visconde de Mauá, em Resende. O nome do sítio onde ela mora hoje é Vale do Pavão. “Estar perto da família me ajuda a superar a perda do Juan”, admite.
Desde então, como fazem muitos sobreviventes de tragédias, Roseana passou a comemorar dois aniversários: um, em 27 de dezembro, quando nasceu; outro, em 5 de abril, quando renasceu.