O que teria levado Cascão e Cebolinha a saírem do fictício bairro do Limoeiro, onde moram, e viajar cerca de 500 quilômetros até o Rio de Janeiro? Seria mais um dos planos infalíveis para tentar derrotar a Mônica? Nada disso! A resposta está na história que Maurício de Sousa lançou no início do mês em homenagem ao Dia Mundial do Autismo.
A tirinha é inédita, mas o personagem, André, não. Portador de transtorno do espectro autista (TEA), ele foi criado em 2002, a convite da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, com o objetivo de mostrar alguns dos sinais do autismo infantil e conscientizar pais e educadores da importância do diagnóstico precoce.
Sua primeira aparição foi no gibi promocional Um Amiguinho Diferente, que teve tiragem de 60 mil exemplares. Na historinha, Magali se apresenta a André, que não responde ao cumprimento dela. Intrigada, ela pergunta a Lucila, a mais nova moradora do Limoeiro, se seu irmão caçula é mal-educado. Meio sem graça, Lucila explica que não: ele é autista! E completa: “Autistas são crianças especiais”.
Além dos quadrinhos, André participa de seis animações curtas que podem ser vistas nos canais oficiais da Mauricio de Sousa Produções. “Crianças autistas podem fazer certas coisas melhor do que crianças da mesma idade”, explica a Mônica em um dos episódios.
O garoto não é o primeiro personagem com necessidades especiais da Turma da Mônica. Há outros como Tati (Down), Luca (cadeirante) e Dorinha (deficiente visual). O pioneiro foi Humberto, criado na década de 1960. Deficiente auditivo, ele não fala e se comunica com seus amigos através de “hum hum”. Daí, aliás, veio a inspiração para o nome dele.
Na conversa abaixo, Maurício de Sousa, de 83 anos, fala do processo de criação do André, conta detalhes sobre Edu, o mais novo amiguinho da turma com necessidades especiais, e responde se algum dentista ou fonoaudiólogo já reclamou do fato de a Mônica não ter colocado aparelho nos dentes ou de o Cebolinha não ter tratado seu probleminha de fala.
SAÚDE: Como e quando surgiu a ideia de criar o André? A iniciativa partiu do senhor ou foi sugestão de alguém?
Maurício de Sousa: Nasceu de um estudo que fizemos para uma campanha da Associação de Amigos do Autista (AMA), em São Paulo, e, também, de um convite da Universidade Harvard. Em 2002, lançamos uma revistinha muito gostosa, Um Amiguinho Diferente, que serve até hoje para muita gente entender um pouco melhor o autismo e suas diferentes manifestações.
Que cuidados procura tomar antes de criar um personagem com necessidades especiais? No caso do André, chegou a consultar médicos?
Tomamos todo o cuidado do mundo quando resolvemos abordar temas mais complexos. Ouvimos sempre profissionais de comprovada credibilidade para não passar informação errada para os nossos leitores.
Quando criamos o André, por exemplo, pesquisamos muito sobre o transtorno do espectro autista (TEA), ouvimos vários especialistas e conhecemos crianças autistas. O TEA não é fácil de ser identificado e, por essa razão, o tratamento pode ser tardio. Então, é preciso passar para os pais, professores e pessoas próximas a essas crianças a informação correta para ajudá-las a desenvolver todo o seu potencial.
Dorinha foi inspirada em Dorina Nowill, a Tati na Tathi Heiderich e o Luca no Herbert Vianna, certo? O senhor se inspirou em alguém de carne e osso para criar o André?
Para criar o Luca, conversei com atletas paraolímpicos. Descobri que são alegres, espertos, inteligentes e bem resolvidos. Com a moral lá em cima. Foi fácil transpor esse clima para o personagem.
Quando pensei em criar uma menina cega, busquei como referência a figura da educadora Dorina Nowill, da Fundação de mesmo nome. Dorina era inteligente, elegante, uma líder nata que não tinha preconceito com quem enxergava e demonstrava preocupação com a causa dos cegos. Tirei tudo daí.
Diferentemente dos outros personagens, o André foi criado através das primeiras informações que recebemos de especialistas da AMA e de Harvard.
Qual seu objetivo ao criar personagens com algum tipo de deficiência ou limitação? É ensinar às crianças que, apesar das diferenças, somos todos iguais?
Os personagens da Turma da Mônica vivem e agem como crianças normais. Como nossos filhos, netos e conhecidos. E todos nós temos amigos com algum tipo de deficiência. Não poderia deixar de apresentar no universo dos nossos personagens amiguinhos que também tivessem necessidades especiais. A ideia é mostrar que podemos aprender as regras da inclusão e vivermos todos em harmonia.
Em geral, como adultos e crianças reagem quando o senhor cria um novo personagem com deficiência? Já houve quem agradecesse pela iniciativa ou contasse alguma história de inclusão?
O retorno é sempre grande e positivo porque falta informação para quem vive e convive com essas crianças. No caso do André, temos relatos de pais que nos enviaram mensagens contando que seus filhos se espelham nos personagens da turma para se comunicar melhor com os amiguinhos autistas.
Você chegou a criar dois personagens soropositivos, Igor e Vitória, para a ONG Amigos da Vida, de Brasília. Por onde eles andam? Será que, algum dia, voltarão ao Limoeiro?
A ONG Amigos da Vida, de Brasília, pretendia desenvolver uma campanha para crianças e jovens. Foi quando eles nos procuraram e, prontamente, aceitamos participar do projeto. A primeira tiragem da revistinha, de 30 mil exemplares, foi para o projeto apenas em Brasília. Nessa primeira etapa, a distribuição foi realizada no setor de pediatria dos seis hospitais de referência no tratamento da aids no Distrito Federal.
Há planos para, futuramente, produzirmos animações e teatro de bonecos para o lançamento das revistinhas em pelo menos seis capitais: Rio, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife e Belo Horizonte.
O André não é o primeiro personagem da Turma da Mônica com necessidade especial. E, provavelmente, não será o último. Já tem em mente qual será o próximo?
Acabamos de criar um novo personagem chamado Edu para uma campanha de conscientização sobre uma doença rara chamada distrofia de Duchenne. É uma doença genética caracterizada pela deterioração muscular progressiva.
Estamos sempre abertos à possibilidade de criar novos personagens. Na maioria das vezes, são ONGs e associações que nos procuram com esse objetivo. Não há assunto que, por mais complexo que seja, não dê para passar à linguagem dos quadrinhos, de fácil entendimento para crianças e seus pais.
Mesmo depois de tanto tempo, o Cebolinha ainda não corrigiu sua dislalia, aquele problema ao falar o “r” das palavras, e a Mônica não colocou aparelho nos dentes. Já houve profissional de saúde que reclamasse com o senhor sobre isso?
Por enquanto, não! (risos) O que acontece muito são os leitores mandarem e-mails perguntando por que a Mônica e o Cebolinha têm essas características.