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Tá na internet, tá na TV, tá nos livros... tá no nosso dia a dia. O jornalista André Bernardo mostra como fenômenos culturais e sociais mexem com a saúde — e vice-versa.
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O longo caminho de volta: o convívio com alguém em coma

A professora Bettina Bopp reúne no livro Pra Quando Você Acordar as crônicas que escreveu para o irmão em coma

Por André Bernardo
Atualizado em 24 jun 2022, 16h27 - Publicado em 24 jun 2022, 11h54

Penélope esperou por 27 anos a volta de Ulisses (Odisseu, no original) da Guerra de Troia. Foram tantas as aventuras e desventuras, ao longo de uma jornada que durou 17 anos, que o poeta grego Homero decidiu transformá-las em poema, Odisseia, lá por volta do século VIII a.C. Impaciente com a demora do rei, o povo da ilha grega de Ítaca exigiu que a rainha escolhesse um novo pretendente. Para ganhar tempo, Penélope resolveu tecer um sudário durante o dia e, na calada da noite, sem que ninguém desconfiasse, desmanchava o que tinha bordado. 

A exemplo da rainha grega que nunca se cansou de esperar por seu amado, a professora Bettina Bopp, de 57 anos, resolveu criar um blog, Pra Quando Você Acordar, enquanto esperava pelo retorno do irmão, Itamar. Ele tinha 41 anos e trabalhava como vendedor de carros quando, numa sexta-feira à tarde, sentiu-se mal e correu para o hospital. “Penélope não tecia porque esperava. Tecia para cuidar de si mesma”, afirma Bettina. “Enquanto esperei, também escolhi os fios, combinei as cores, desatei os nós… Durante todo esse tempo, precisei confiar. ‘Confiar’ é fiar junto”. 

A espera de Bettina Bopp durou intermináveis 15 anos. Começou no dia 16 de setembro de 2005, quando Ita, (o apelido de infância de seu irmão) sofreu um infarto, seguido de sete paradas cardíacas, e chegou ao fim no dia 8 de setembro de 2020, quando ele morreu. 

“Má, só posso te agradecer. Aos 14 anos, quando você dormiu, vivi um Big Bang de dores muito adultas, mas que fizeram eu ser quem eu sou hoje. Graças a você, aprendi que tem coisas na vida que estão fora do nosso controle”, postou a atriz e blogueira Maria Bopp, de 30 anos, filha de Bettina e sobrinha do Itamar. 

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Após quatro meses no hospital, Ita foi transferido para a casa dos pais, onde permaneceu aos cuidados de um sem-número de profissionais, como médicos, enfermeiras, nutricionistas, fisioterapeutas e fonoaudiólogos. Ita não foi o único a entrar em coma. Bettina, de certa forma, também parou de viver. “Na casa do (José) Saramago, o relógio da sala marca sempre 16h, o horário em que o escritor conheceu sua esposa, Pilar del Río. Meu relógio emocional marca 18h30. E eu espero os ponteiros andarem”, afirma Bettina no livro que acaba de lançar. 

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+Leia também: Sutilezas letais: os sintomas menos conhecidos do infarto

Para não sucumbir a um misto de emoções, que mesclavam raiva, medo e culpa, Bettina começou a escrever crônicas sobre o irmão. Era fevereiro de 2014. Nelas, contava de tudo um pouco: quem tinha casado, quem tinha nascido, quem tinha morrido. 

Cento e treze dessas “cartas” foram parar no livro Pra Quando Você Acordar Crônicas de Saudade e Espera (Planeta – clique para comprar). Cada capítulo começa com a frase “Você não vai acreditar, mas…” e tem como título o verso de uma música, como “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, de Caetano Veloso; “Um mais um é sempre mais que dois”, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, e “Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”, de Belchior (1946-2017). 

Confira agora a entrevista que fiz com Bettina Bopp:

VEJA SAÚDE: O que você sentiu ao transformar os textos do blog em capítulos de livro? Foi doloroso reler o que escreveu enquanto seu irmão estava em coma? Ou foi catártico?

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BETTINA BOPP: Foi libertador. Era o fechamento de um ciclo importante, da forma mais bonita que eu poderia imaginar. Confesso que demorei um pouco pra entregar os originais pro editor e tirar o blog do ar. Seria mais um luto, outro término. O blog e os leitores do blog foram responsáveis por fazer muitas feridas fecharem. Ficaram as cicatrizes, mas não dói mais. 

Seu irmão ficou em coma por 15 anos. Lá atrás, você esperava que fosse demorar tanto? Pode-se dizer que o blog tenha ajudado você a superar a “ausência” dele?

Hoje, quando olho pra trás, penso que tínhamos uma ingenuidade, um desconhecimento da gravidade das sequelas neurológicas. Logo que aconteceu, minha família e eu tínhamos muita certeza de que o Ita acordaria. Acho que, durante um ano, eu tive uma esperança imensa e não aceitava qualquer outro desfecho.

Depois desse primeiro ano, parecia que as mudanças seriam definitivas e comecei a viver todos os estágios do luto: negação, raiva, barganha e tristeza. Só não conseguia viver a aceitação. Digo que entrei em coma com ele. Não me permitia comer uma feijoada na Vila Madalena, ir à praia, celebrar com amigos e amores, enquanto ele dormia. 

O Ita estava ali e não estava ali. Ele tinha pouco do irmão que eu amava. Não tinha mais o cheiro, a voz, o olhar. O formato das mãos tinha mudado. Ele só parecia ele mesmo quando bocejava ou espirrava. De resto, era tudo muito diferente. E eu tinha que amar aquele irmão desconhecido. 

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Comecei a escrever, sem pretensão, as conversas que gostaria de ter com o Ita, se ele estivesse acordado ou quando acordasse. Postei essas conversas nas minhas redes e muita gente comentou e, de alguma forma, era como se o Ita tivesse saído das quatro paredes do quarto em que dormia. Ele estava de novo nas rodas de conversa, “reencontrando” pessoas e conhecendo outras tantas novas. Isso me fez bem. Criei o blog e essas conversas cotidianas venciam o coma, a imobilidade, a quase morte. 

Escrevi muito nos três primeiros anos. Foi catártico. Escrevia e chorava, lia os comentários e chorava, ouvia histórias parecidas e chorava. Isso foi me curando.

Seu irmão morreu em 8 de setembro de 2020. Você acreditava que, um dia, o Ita pudesse acordar ou, com o passar dos anos, começou a perder a esperança? 

O tempo era inversamente proporcional à esperança. Mas, ao abandoná-la completamente, eu estaria desistindo do Ita. Então, vivemos lutos possíveis, nos agarrando às histórias de pessoas que acordaram depois de anos. 

Seu irmão sofreu um infarto e sete paradas cardíacas, aos 41 anos. Qual é a lembrança mais forte que você guarda daquele fatídico dia?

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Era um dia comum. Falei com a minha mãe ao telefone perto das 13 horas e o Ita estava lá, almoçando com ela. Ouvi a voz dele ao fundo. 

Só ficamos sabendo o que aconteceu quando minha mãe ligou pra ele no fim de tarde, retornando uma ligação que ele havia feito pra ela horas antes. Quem atendeu foi uma enfermeira do hospital e disse que o Ita havia sofrido um acidente. Meus pais foram pra lá. Quando soubemos, meu irmão Fábio e eu também corremos pra lá.

O caminho até o hospital pareceu interminável. O médico disse que o estado dele era muito grave. Ele estava na UTI. “Tinha sido o pior infarto, na pior idade”, os médicos repetiam. O Ita havia chegado reclamando de dor de cabeça e dor no braço. Fez os exames e, quando estava no consultório, teve a primeira parada cardíaca, seguida de outras seis. Mesmo sendo socorrido na hora, faltou oxigenação no cérebro. O coração parava e o Ita era reanimado, parava e era reanimado. Isso, por 40 minutos! 

O médico era jovem. Ele me disse que o Ita estava dirigindo, falando, andando quando chegou ao hospital — e, por isso, ele não o deixaria morrer em suas mãos. Acho que, se fosse um médico mais experiente, não tentaria reanimá-lo por tanto tempo, porque as sequelas neurológicas eram muito prováveis.

Não é todo dia que alguém tão jovem sofre um infarto e, logo em seguida, sete paradas cardíacas. Qual teria sido a razão? O que os médicos disseram? 

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O Ita estava fumando muito, mais de um maço por dia. Nada sinalizava que ele tivesse algum problema cardíaco. Não tinha pressão alta, diabetes, nenhuma comorbidade. Aconteceu. 

Você continua escrevendo “cartas” para o Ita ou, com a morte dele, em 2020, parou? Aliás, o que o blog representou para você durante todos esses anos? 

Parei de escrever e tirei o blog do ar quando a possibilidade de virar livro se concretizou. No livro, tem crônicas inéditas que eu não tinha postado na época que escrevi. A escrita me deu a chance de organizar o meu caos interno. Meus filhos dizem que foi uma alquimia: a transformação de uma dor muito grande em uma coisa bonita. 

É verdade que, durante o coma, o Ita abria e fechava os olhos, esboçava sorriso, derramava lágrimas e, por vezes, até pronunciava palavras inaudíveis? Como os médicos explicam isso?

Essa é uma ótima pergunta, porque muitas pessoas têm essa dúvida. Alguns poucos acham até que fomos cruéis de “deixar” o Ita assim por tantos anos. Não era uma escolha nossa. Os médicos diziam que o cérebro dele era como um computador que desligou de repente: nada quebrou, mas não dá pra saber se ele vai ligar novamente. Poderia ligar amanhã, daqui a 5 anos ou nunca mais… 

O Ita não teve morte cerebral e também não precisava de nenhum aparelho para estar vivo. Apenas a sonda gástrica, que era colocada algumas vezes ao dia para alimentá-lo. Ele respirava sozinho. O coração batia sem suporte. Não pensamos em fazer, mas, mesmo se cogitássemos, a eutanásia não é permitida no Brasil. Ela se caracteriza como homicídio privilegiado.

O Ita estava em coma vigil ou síndrome de vigília arresponsiva, antes chamado de estado vegetativo persistente. Nesse estado, a pessoa não interage com o ambiente. Os médicos dizem que não há nenhuma atividade voluntária. O Ita abria e fechava os olhos. Às vezes, ria alto; outras, chorava. Assustava com o latido do cachorro ou com a porta batendo. Todos os dias, era colocado sentado em uma poltrona para evitar pneumonia e escaras. Fazia duas sessões de fisio e uma de fono. 

Em algumas situações, em um aniversário dele com a família reunida ou quando o Lucca, meu filho, cantou pra ele uma música de que gostava, ele pareceu se emocionar de verdade. Os médicos diziam que não, mas pra gente parecia que sim. 

Que mensagem você gostaria de passar aos leitores de Pra Quando Você Acordar? 

Não quero ser pretensiosa achando que posso passar alguma mensagem ou ensinar algo sobre dor e luto. Sou uma pessoa comum com todos os sentimentos bons e ruins. São crônicas sobre o cotidiano de uma família machucada, mas unida e que se ama muito. Por isso, doeu tanto. 

Acho que as pessoas se identificam porque, apesar de ser uma história individual, trato de temas universais: família, separação, ausência, amor, luto, saudade… As devolutivas que tenho tido me emocionam. Teve gente que diz que voltou a falar com os irmãos com quem tinham brigado, outras tantas me disseram que o livro foi uma boa companhia para momentos difíceis. Acho essa troca bonita. 

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