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(Re)existir por meio do alimento: a importância da cozinha afetiva

Uma experiência da cosmovisão da diáspora africana sobre a importância de ressignificar a relação com os alimentos

Por Jussara Otaviano
Atualizado em 24 set 2024, 09h19 - Publicado em 19 set 2024, 10h20
cozinha-afetiva
Resgatar a própria ancestralidade é uma das vantagens de olhar com carinho para a comida (Freepik/Veja Saúde)
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Foi vivendo uma intolerância alimentar que pude navegar pelo tema alimento. Quando me percebi intolerante à lactose, brevemente associei intolerância a outra palavra… insegurança.

Afinal, leite era tudo que mais remetia à condição de afeto (leite materno, leite para fazer algumas das minhas receitas preferidas) e a alimentos que fazem parte de nosso identitário social.

Tudo que ameaça a vida e a saúde, seja ela biológica, mental, psicossocial ou ecológica, importa e precisa ser ressignificado, em especial neste momento da história da humanidade.

Também precisa ser ressignificado o que entra em nosso corpo, afinal o ato de comer também é político. Assim como disseram Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto…você tem fome de quê?

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no quarto trimestre de 2023, o Brasil apresentou melhorias significativas na segurança alimentar dos domicílios: 72,4% dos lares estavam em situação confortável. Por outro lado, 27,6% deles, ou 21,6 milhões de domicílios, ainda enfrentavam dificuldades para obter comida, sendo que 4,1% dos domicílios brasileiros estavam em uma situação grave de fome.

A maioria dos lares em insegurança alimentar (54,5%) é composta por pessoas que se declaram pardos.

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Imagine você, responsável pela sua família, não conseguindo prover alimento para os seus. Imagine a sensação de impotência e, lá no fundo de suas entranhas, algo dizendo assim, como disse Solano Trindade: “Tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome…”

O alimento é a fonte de energia para que possamos pensar, sentir, nos movimentar e nos relacionar. Infelizmente, dados apontam para maior insegurança alimentar entre os afrodescendentes e indígenas, basta ver a situação emergencial de saúde e nutrição da etnia indígena Yanomani no ano de 2023.

+Leia também: Entrevista: “Destruição na Amazônia ameaça a saúde de todos”

Por que não preservarmos rios limpos e terra boa para que os indígenas possam se nutrir e continuar nos ensinando a cuidar da floresta e preservar o planeta? Ou, ainda, por que não ofertar menos açúcar para os afrodescendentes, que naturalmente ficam mais expostos à doenças como hipertensão e diabetes?

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O condicionamento e o hábito alimentar incorreto também podem se traduzir em uma forma de aniquilamento.

+Leia também: O futuro da comida está no passado ou na comida do futuro?

Ressignificando a comida

Existem iniciativas entre profissionais da gastronomia que chegaram para ressignificar o caminho. É o caso da chef de cozinha Dani Pimenta, uma mulher preta retinta arretada, conectada com os alimentos ancestrais, que corajosamente abriu o restaurante: Olivia – Cozinha Afetiva.

É um local de resistência afetiva, localizado no Morumbi, região onde as pessoas transitam no ritmo paulistano habitual, no vai-e-vem das transações comerciais. O Olivia é um local amplo com acomodações rústicas e sofisticadas, com cores marcantes e expressivas, muitas plantas gente despojada, crianças brincando livres. Parece um terreirão de cidade do interior.

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Ser acolhida pela chef com um abraço já foi alimento e meu prato, embora estivesse com restrições alimentares, foi preparado por ela no mesmo instante que cheguei, com sabor de afeto e cura.

Enquanto saboreava a comida — com as mãos, porque fiz questão de deixar os talheres de lado — logo fui abordada pela chef que me perguntou: “Tem gosto de quê?” Parei um pouco, e então o cheiro de mato chegou, com um aroma de alecrim harmonizado com outras ervas, tubérculos e frango grelhado, tudo em uma apresentação perfeita.

Um prato com jeito de campo e gosto de alegria. Sim, alegria é o que milhares de pessoas levam para suas casas quando buscam o sustento e preparam o alimento para suas famílias.

Também vale citar a história de Breno Cruz, que escreveu o livro Intersecção e Liderança (Editora CRV), lançado em julho deste ano no restaurante Preto Cozinha. A obra chegou como forma de expurgar suas dores vividas como homem preto periférico, que construiu uma robusta trajetória acadêmica, e colabora com a discussão racial na gastronomia do Brasil, com foco no empreendedorismo social.

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Várias personalidades participaram do evento, com importantes contribuições. Em um momento, a pergunta central aponta para os caminhos possíveis para interseccionar e alimentar não só fisicamente, mas afetivamente indivíduos em constante estado de exclusão e fragilidade, ficando aqui o destaque para pessoas retintas.

Esta discussão foi arrebatada pelo renomado chef Edson Leite especialista em Gastronomia Periférica, quando afirmou que nós, povos originários e diáspora africana, estamos numa região de fronteira. Construímos uma trajetória e um legado para os nossos a partir das condições de desigualdade que vivemos no passado. Assim, hoje ocupamos espaços que antes nos foram negados.

Nessa região de fronteira, recebemos ataques dos dois lados. Do grupo que fazemos parte e do grupo que dominava os espaços que hoje ocupamos.

Nossa resiliência é importante, precisamos seguir questionando as diversas negligências ocorridas com os nossos, desde a desigualdade na segurança alimentar, que leva à morte física, até o descuido com a segurança e responsabilidade afetiva, que leva à morte emocional.

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Se estamos na fronteira e às vezes na trincheira, precisamos regularmente rever nossas posturas, nossas estratégias de diplomacia para assim colaboramos com o ecossistema e com o equilíbrio alimentar, seja qual for a forma de alimento.

Nos alimentarmos juntos, equitativamente, nos traz um sentimento de pertencimento, fortalece o corpo físico e nos dá força para não desistirmos da luta cotidiana. Para persistirmos na nossa (re)existência.

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