Trago aqui a experiência de duas mulheres potentes: Marta Celestino, yalorixá, administradora de empresas e CEO de uma das escolas de inglês para afrodescendentes mais sólidas do mercado brasileiro; e Denize Ornelas, médica de família e comunidade, com mestrado pela Unifesp. O que elas têm em comum? Ativismo, empoderamento e a força da comunidade.
Um dos princípios da atenção primária em saúde é a competência cultural, um termo complexo, pois lida com a capacidade de compreender a pessoa em seu ambiente social e antropológico.
E, pensando na população negra, um conceito fundamental neste momento em que o Conselho Nacional de Saúde reconhece os terreiros de matriz africana como equipamentos promotores de saúde e cura complementares aos cuidados do SUS.
Aqui temos duas mulheres afrodescendentes e suas visões de mundo, visões que se fundem em um mesmo cruzamento. Mulheres que compartilham conhecimento, seja ele técnica, seja ancestral. Sejam bem-vindos às reflexões delas – começamos com a Denize, seguida da Marta.
Além do corpo
Convidada para falar sobre a saúde de mulheres negras, me questiono sobre o que as pessoas que leem a coluna esperam descobrir sobre esse assunto, uma vez que, em geral, a saúde da mulher é tratada com foco no nosso corpo fragmentado em mamas, genitais e útero, e as ações de cuidado se concentram em torno da nossa capacidade e ciclo reprodutivo.
Dentro desses limites biológicos utilizados pela medicina tradicional, nós, mulheres negras, somos ainda mais fragmentadas. Estudos como A cor da dor: iniquidades raciais na atenção ao pré-natal e ao parto no Brasil e Socio-economic and ethnic group inequities in antenatal care quality in the public and private sector in Brazil relevam o impacto do racismo sistêmico para esse importante grupo de brasileiras.
Os dados da segunda edição do Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra do Ministério da Saúde corroboram esses efeitos negativos. Mais de 60% dos casos de HIV, tuberculose e sífilis, por exemplo, ocorrem nessa população, também mais acometida por complicações da anemia falciforme.
O cenário atual revela que o acesso a exames preventivos contra câncer de mama e de colo de útero e até teste rápido para infecções sexualmente transmissíveis é significativamente menor entre mulheres pretas e pardas, contribuindo para que o diagnóstico de tumores e outras doenças seja feito mais tarde, limitando as possibilidades de tratamento e aumentando a mortalidade.
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Mesmo no acesso tecnológico já foram identificadas, no âmbito dos exames preventivos, como a mamografia, distorções na sua capacidade de fazer diagnósticos em proporções semelhantes entre mulheres negras e brancas por utilizarem algoritmos que não são criados considerando a diversidade de corpos – mamas mais densas são comuns entre mulheres afrodescendentes, por exemplo.
Da mesma forma, os dados apontam que, durante gravidez, parto e puerpério, mulheres negras, independente de estarem assistidas no setor público ou privado, sofrem com negligências, menos acesso a exames, menos intervenções preventivas como uso de medicações e até mesmo menos orientações para controle de doenças prevalentes, como diabetes, hipertensão, obesidade e tabagismo.
Sabemos, por esses mesmos estudos, que essas iniquidades são produzidas pelo racismo em suas diferentes faces: especialmente o institucional e o interpessoal. Poderíamos continuar listando a cada doença ou faixa etária as desigualdades que temos enfrentado nos cuidados com a mulher negra, cobrando uma maior sensibilização de profissionais de saúde e um olhar mais criterioso. Mas não é suficiente.
Precisamos falar que parte da causa dessas desigualdades vem da forma como as mulheres negras são estereotipadas como mais fortes e menos sensíveis à dor e mais negligentes com a própria saúde.
Essas imagens de controle atravessam não só o imaginário dos profissionais de saúde, mas dos comunicadores que preparam as campanhas, dos jornalistas que escrevem matérias sobre o assunto e muitas vezes só querem os dados e números dessas iniquidades para ilustrar matérias.
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Mulher-planeta
Gosto de pensar na ideia de que ser uma mulher é como ser um planeta, tamanha a complexidade que se encontra no simples fato de existirmos. Quando levamos essa perspectiva para a vida de uma mulher negra, encontraremos ilimitadas possibilidades de existência e experiência.
Como refletir a respeito de um assunto vastamente capilarizado pela vida primordial, pela vida contemporânea, pela própria história da natureza e dos que se chamam de seres humanos? Seguindo os pensamentos da filósofoa Angela Davis, a mulher negra é o centro do movimento do mundo e infelizmente quase ninguém sabe disso.
A ideia do fóssil mais antigo descoberto ser de uma mulher negra diz muito sobre a sua importância no desenrolar da vida humana – ainda assim, vivemos num mundo onde o que é velho é descartado, onde a existência ancestral é depreciada como algo supersticiosamente primitivo, sem sentido para a atualidade.
Fica fácil entender, assim, a luta de alguns segmentos pela legitimação da obsolescência das pessoas mais velhas. O ódio ao envelhecimento associado à misoginia assola mulheres e mais duramente a mulher negra.
O envelhecimento da mulher de pele escura passa por rugas tardias e é sempre o rosto de uma mulher retinta em condição de vulnerabilidade que aparece quando se fala de uma preta velha. Incrivelmente, a preta velha é aquela que tem conhecimento ancestral: sabe benzer, sabe usar as plantas como remédio, é parteira e tem sempre uma palavra de consolo para qualquer pessoa que a procure.
Preta velha na verdade é a imagem do poder negro ancestral, que as culturas eurocêntricas desprezam, depredam e usurpam. Basta equiparar a esfinge grega com a esfinge egípcia africana.
A experiência de muitas mulheres negras na sociedade é de descaso, apagamento e desgaste. O racismo e a eugenia nos perseguem e o corpo negro ainda hoje é domínio público e comprovamos isso com inúmeros casos de negligência em serviços de saúde, até aquelas mães negras que nem tem o direito de enterrar seus filhos mortos pelo estado.
É muito difícil falar de mulher negra sem pensar nas mazelas que nos enquadram todos os dias.
Contudo, o trabalho duro dos movimentos sociais no Brasil descortinou uma nova geração de mulheres negras, resgatando seus papéis de “Mães Públicas”, representando as muitas ancestrais rainhas, sacerdotisas, conselheiras, políticas, matemáticas, médicas, juízas, ministras, líderes de exércitos em outro continente, que organizavam e trabalhavam pela sociedade ocupando espaços de poder.
Isso só reforça a minha convicção sobre votar cada dia mais em mulheres negras cuja natureza não permite que se afaste da política e do serviço à sociedade. Seja esta mulher modelo, política, cantora, empresária, professora, cientista, sendo uma mulher negra, está sempre na vanguarda rumo ao futuro.
Essa energia é inerente à existência da mulher negra e seu espírito ancestral, conhecedor dos caminhos da vida e da morte, guardiã do bem viver.
Somos yalorixás, somos executivas, somos enfermeiras, filósofas e tantas outras coisas… E estamos sempre movimentando a sociedade mesmo que seja através do nosso lamento disfarçado de sucesso ou do nosso sucesso aniquilador de lamentos.
Estamos assistindo a lindíssimas mulheres negras gordas modelando para marcas famosas, mulheres negras na esfera política de punho cerrado, mulheres negras lançando tendência estética, mulheres negras com suas vozes propagadas, seus discursos e teorias aclamados até mesmo pela própria excludente academia.
A mulher negra é puro ritmo social, e o mundo precisa se acostumar porque não é possível apagar o que é intrínseco à existência subjetiva vivida em coletivo. A organização social inverte valores, mas gosto de pensar que no fim as coisas voltarão ao normal, e me arrisco a dizer que a experiência da mulher negra e sua expressão de inconformidade são parte importante do conjunto de pilares do progresso.
O legado das mulheres primordiais vive através de todas nós e nos deixa essa herança, que precisa vibrar também em nosso DNA para alcançarmos maiores equidades para as mulheres negras contemporâneas.