“Fui abusada sexualmente desde cedo, mal lembro a idade, as memórias se confundem e se apagam.
Quando tinha uns nove anos, eu acho, meu padrasto abusava de mim. Eu não gostava, sentia vergonha e tinha muito medo. Ele me ameaçava. Dizia que, se eu contasse à minha mãe, ia me matar. Ele me humilhava e falava que ninguém me amaria e acreditaria em mim.
Por anos acreditei nessa mentira calada. Eu quis fugir. Eu quis me matar. Queria tanto que alguém tivesse me ajudado ali. Só tive coragem de contar à minha mãe com 18 anos de idade. Carrego as sequelas até hoje.”
Ao ouvir esse relato pelo direct do Instagram, engoli a seco e me senti dilacerada. Não era justo. Não é justo. E, por isso, não posso me calar.
Acreditamos que os abusadores estão em guetos escuros e se parecem com monstros, mas, na verdade, eles estão bem mais perto do que imaginamos.
Para ter ideia, de 85 a 90% dos abusadores são pessoas conhecidas (pais, irmãos, tios, avós, padrasto, madrasta, vizinhos ou amigos). Normalmente, são pessoas que “amam” crianças e gostam de ficar com elas. Eles não se parecem com monstros e conseguem facilmente se aproximar dos pequenos.
Também costumamos achar que os casos são isolados. Mas você sabia que uma em cada três meninas e um em cada seis meninos são vítimas de algum tipo de abuso sexual até completarem 18 anos?
Em mais de um terço das notificações de abuso sexual, as vítimas têm menos de cinco anos de idade – esses dados são citados no Telecurso de Especialização na Área da Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes, da USP (Azevedo e Guerra, 2000).
Os números impressionam, mas não refletem uma realidade ainda mais sombria. Isso porque pesquisas afirmam que apenas 10% dos casos de abuso infantil são efetivamente notificados.
Ou seja, os índices não refletem nem a ponta de um iceberg assustadoramente gelado e que vive escondido em um tabuleiro dos assuntos que não são falados. Isso precisa mudar.
Foco na prevenção
Um evento traumático como um abuso durante a infância pode ser determinante para toda a vida adulta da vítima.
E devemos levar em conta que, muitas vezes, a criança ou adolescente deixa de relatar o ocorrido por medo ou até mesmo falta de compreensão. Por isso, a nossa maior arma contra esse crime é conhecer as possíveis ações de prevenção.
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Vamos, então, começar entendendo o que é o abuso sexual.
Muitos ainda não sabem, mas o estupro (em outras palavras, conjunção carnal, que é a introdução completa ou incompleta do pênis na vagina) não é a única forma de abuso.
Esse crime se dá em todo e qualquer ato de natureza erótica com ou sem contato físico entre um adulto e uma criança ou adolescente – ou até mesmo entre um adolescente mais velho e uma criança.
E por que essa atrocidade é tão frequente na infância?
Muitas vezes, a criança pode até perceber que algo diferente está acontecendo ou mesmo sentir prazer, mas ela não entende o quão errado isso é porque não foi ensinada sobre o assunto.
Além disso, é muito comum que exista um elo de confiança e responsabilidade que une o agressor à criança (ou adolescente), sendo a “traição dessa confiança” um dos aspectos mais marcantes desse tipo de violência. É por isso que a vítima silencia.
Daí porque é tão importante que estejamos preparados para agirmos em duas frentes de combate ao abuso sexual infanto-juvenil:
1. Educação sexual
2. Entender os sinais
É preciso que a educação sexual aconteça em casa. Somente tirando o tema da invisibilidade podemos proteger nossas crianças de terem sua infância roubada.
Cabe ressaltar que educação sexual não é incentivo ao sexo: é proteção e prevenção. Comece desde cedo. Desde a primeira troca de fralda – e de olhares também. Aproveite esse momento para ensinar o quão especiais são as partes íntimas da criança.
Veja algumas orientações:
+ Ensine sobre sexualidade de forma lúdica
Gosto muito de livros que eu mesma utilizo para minhas filhas, como: “Meu Corpo, meu Corpinho“, “Não me Toca seu Boboca” e “Pipo e Fifi“.
+ Ensine à criança que as suas partes íntimas são muito especiais, e que ninguém deve mexer ou tocar nelas – só na hora da higiene. Mas oriente a criança sobre o que é a limpeza das partes íntimas, como é feita e nomeie as pessoas do círculo de confiança que estão autorizadas a realizá-la.
+ Não deixe a criança sozinha com adultos em quem você não confia. E caso seu filho apresente um comportamento diferente após o contato com alguém – seja de medo, raiva, angústia ou mais erotizado –, questione sempre o que ocorreu, do que brincaram e o que fizeram. Não deve existir segredos entre a criança e os pais.
+ A criança precisa saber os nomes corretos das partes íntimas. Chamamos braço de braço, perna de perna… Eles não costumam ter outros nomes. Então, por que fazemos diferente com as nossas partes íntimas?
Você até pode chamá-las pelo apelido, como “pipi” ou “pepeca”, mas, por proteção, ensine e explique os seus nomes corretos. Se um abusador fizer algo, nomear as partes íntimas corretamente não gerará confusão ou ambiguidade quando a criança relatar o caso ao adulto de sua confiança.
+ Não obrigue a criança a dar beijos e abraços em (des)conhecidos. Ela precisa entender que ninguém tem o direito de obrigá-la a fazer nada com o seu corpo, porque o corpo é dela – não é de posse ou propriedade de outra pessoa, e isso deve ser respeitado.
Parece “frescura”, mas, como citado acima, a grande maioria dos abusadores são pessoas conhecidas da família.
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As pistas do abuso
É imprescindível estar sempre atento aos possíveis sinais de abuso sexual. A criança pode relatar dor ou incômodo nas partes íntimas, além de outros sintomas corporais.
Pode haver mudança de comportamento, como crises de ansiedade e explosões de raiva, sintomas depressivos ou apatia.
A criança ou adolescente pode querer se isolar dos amigos por vergonha ou raiva, ter problemas sérios de autoestima e até tentar tirar a própria vida. Falas erotizadas/inapropriadas são mais indícios de que algo pode estar errado.
E, atenção, não ignore o que sua criança expressa além da fala: comportamentos erotizados, como mexer nos próprios órgãos sexuais ou de outra criança, pode ser uma reprodução de algo a que ela foi submetida. Desenhar a parte íntima muito grande é outra atitude que pode ser interpretada como um pedido de socorro.
Regressões comportamentais também merecem um olhar especial. A criança volta a urinar em locais e horários inadequados, chupar dedo, pedir a chupeta… Porém, esses são apenas alguns dos sinais.
Ouça seu filho! Acredite no que ele está te dizendo – seja em palavras, ou não. Junto com a educação, essa será sua maior ferramenta diante de um caso de abuso.
E, em casos de suspeita, não hesite: denuncie! Disque 100.