Nivelar pelo alto: o autismo no mercado de trabalho
Organizar o mundo corporativo para neurodivergentes não é dar chance aos coitados, mas melhorar o modo como hoje trabalhamos e vivemos

Apenas duas a cada dez pessoas do espectro autista hoje são empregadas formalmente no Brasil. O capacitismo, forma de preconceito ligada ao modo como vislumbramos a existência de pessoas com condições crônicas de saúde, seja ela mental ou somática, figura certamente entre as raízes deste problema.
O risco é de, por um lado, só enxergar os desafios vividos pela pessoa e não suas potências. Esse tipo de visão pode promover condescendência e incorrer em coitadismo.
Por outro lado, o capacitismo também pode se manifestar quando alguém só consegue perceber as potências e não enxergar os desafios enfrentados, invisibilizando a pessoa em suas necessidades.
O fato de a condição do espectro autista ser nomeada como transtorno também contribui para que as pessoas que assim são constituídas sofram capacitismo. Transtornado é algo que foi desvirtuado, retorcido, virado do avesso. Dá a pensar que se trata de forçosamente algo ruim.
Nos ambientes de trabalho, os preconceitos podem fazer com que empresas e instituições suponham que as transformações necessárias para acolher e fazer vicejar as potências de uma pessoa autista sejam muito complexas e dispendiosas.
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As adaptações necessárias para promover mais inclusão no trabalho
As adaptações do ambiente de trabalho são diversas e não se limitam ao rearranjo do espaço físico para manejo de estímulos sensoriais excessivos.
Há de se considerar que os desafios enfrentados pelos autistas se referem à sua lida com o outro, com o espaço e com o tempo, ou seja, no modo como socializam e como necessitam de previsibilidade na organização do ambiente onde estão inseridos e de suas rotinas ao longo do dia.
Essa necessidade de antever o cotidiano serve para reduzir a carga de ansiedade e a energia despendida pelo excesso de informação sensorial, afetiva, relacional, enfim, cognitiva a que estamos mais sujeitos.
Essa sobre-excitabilidade pode também ser um de nossos trunfos. Por lidar com mais informações, aprendemos a reconhecer padrões bastante rapidamente, podemos encontrar respostas criativas e inovadoras para problemas antigos, podemos ser mais pragmáticos, diligentes e disciplinados.
Certamente isso pode variar se apresentarmos, além da condição do espectro, tonalidades dos outros neurotipos, como o TDAH, a deficiência intelectual, as altas habilidades e superdotação, entre outros.
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Dentre outras coisas, estes aspectos também podem nos tornar alvos fáceis de toda sorte de relação abusiva institucional, seja vinda de colegas, seja de superiores. As relações abusivas também mudam de cor conforme nossas singularidades, mas continuam presentes.
Benefícios para todos
Pensar num ambiente de trabalho que seja menos cacofônico (espaços abertos podem ser um verdadeiro pesadelo para pessoas do espectro), com luzes menos estridentes, com conforto térmico, pode também ser benéfico para pessoas neurotípicas.
Manter uma comunicação clara e direta, solicitar aquilo que se pretende e não esperar que o outro adivinhe ou suponha o que se quer com sinais oblíquos ou outra linguagem que não seja a expressamente falada, pode melhorar as relações de qualquer integrante de um grupo de trabalho.
Respeitar acordos prévios, respeitar as horas de trabalho, pagar salários dignos, saber distribuir a carga de trabalho entre presencial e remoto, ser cordato e compassivo na lida cotidiana, tudo isso beneficiaria qualquer pessoa, neurodivergente ou não.
Contrariamente ao que o capacitismo nos faz pensar, organizar o mundo do trabalho (o ambiente físico, as estruturas funcionais e as relações interpessoais) para pessoas neurodiversas não seria dar chance aos coitados, mas sim, nivelar pelo alto o modo como hoje trabalhamos e vivemos.