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Transtorno dismórfico corporal: o desencontro entre o que se vê e se sente

Psiquiatra explica o que está por trás desse distúrbio, que pode ser reforçado pelas redes sociais e requer tratamento especializado

Por Maria Francisca Mauro, psiquiatra*
13 jul 2021, 10h28
foto de menina adolescente com uma faixa de tinta sobre seus olhos
Transtorno dismórfico corporal afeta cerca de 4 milhões de brasileiros, a maioria jovens.  (Foto: iStock/iStock)
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No livro Memórias do Subsolo (Editora 34), o russo Fiódor Dostoiévski narra, de forma brilhante, questões existenciais universais por meio de um protagonista em torno dos 40 anos que tinha, entre os seus sofrimentos, uma autoimagem de feiura e uma incompatibilidade com a sociedade à sua volta. Para além das lentes de aumento das redes sociais e de toda sorte de instantaneidade que marca nossos tempos, o fato é que esse tipo de sofrer já se encontrava descrito na literatura do século 19.

Portanto, não podemos somente atribuir à era moderna essa percepção de pressão pela imagem. Pessoas que vivenciam um ponto do seu corpo como defeituoso, ou de extrema feiura, não são vítimas da imagem que se propaga. Antes de tudo, guardam essa certeza do “defeito” como algo impregnado em suas mentes.

Assim, não existe espelho que os convença do contrário. Não é uma insatisfação relacionada ao corpo ou imagem devido a estar fora do peso ou acentuada por alguma perturbação na relação com a comida, como nos transtornos alimentares. A certeza do defeito é específica a algum ponto do corpo e consome o pensamento de forma obsessiva, sem trégua.

Tais comportamentos podem ser classificados como transtorno dismórfico corporal, que atinge cerca de 2% da população mundial. No Brasil, estima-se que mais de 4 milhões de pessoas, entre 15 e 30 anos, sejam diagnosticadas com o quadro.

Dados de estudos em centros de atendimentos para pessoas com diagnóstico psiquiátrico, dentro do espectro do transtorno obsessivo compulsivo, mostram que 12% dos brasileiros desse grupo sofrem por algum ponto específico no corpo, o qual acreditam ser defeituoso. Nas pessoas que sofrem com isso, ocorre um pensamento persistente de que há um defeito em um ponto específico do corpo. As partes mais comuns são rosto, nariz, sobrancelhas, cabelos, bochechas, dentes e pele.

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Para poder disfarçar ou esconder esse local, a pessoa realiza rituais compulsivos, como se olhar várias vezes, usar bonés e bandanas, ou algum vestuário que camufle a área. Para além dos pensamentos que invadem a mente e atos repetitivos, em alguns quadros mais graves o indivíduo pode lançar mão de tesouras, estiletes ou mesmo realizar procedimentos cirúrgicos ou outras intervenções.

No mundo real das pessoas que sofrem com o transtorno dismórfico corporal, seu espelho interior é vivo, fala e fiscaliza. Seu subsolo interno é marcado por uma certeza de que aquele defeito precisa ser escondido ou mesmo cortado fora de sua vida.

Esse comportamento costuma aparecer na adolescência. É nessa fase que se abre um caminho secreto dentro da pessoa, que acredita que deve resolver o problema com intervenções cirúrgicas ou procedimentos estéticos. A proporção dentro de clínicas de cirurgia plástica pode atingir 12,3%; 20,1% em centros de rinoplastia; 5,2% em odontologia estética; e 9,2% em cirurgia dermatológica.

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Grande parte das pessoas que sofrem com o transtorno tem a certeza de que o problema que elas apresentam é físico, não emocional, o que as faz resistir a um tratamento psiquiátrico. Neste grupo também ocorre, em maior proporção, outros distúrbios psíquicos, principalmente depressão, fobia social, transtornos alimentares e maior risco de suicídio. Esses indivíduos não podem ser negligenciados.

Estudos demonstram que, apesar de procedimentos realizados para superar o pretenso “defeito”, o quadro tende a permanecer inalterado. O tratamento, portanto, não se ampara no físico: consiste em avaliação e acompanhamento psiquiátrico, com prescrição de medicamentos capazes de atenuar o sofrimento emocional. Além da psicoterapia, que ajuda o paciente a minimizar sua autocrítica e trabalha para que ele deixe de encarar aquele único ponto como elemento central de sua vida.

* Maria Francisca Mauro é psiquiatra, pesquisadora colaboradora do Programa de Obesidade e Cirurgia Bariátrica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro, e membro do Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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