Vamos começar direto ao ponto: o transplante de fezes é a transferência de bactérias intestinais de um doador saudável com o objetivo de proporcionar benefícios à saúde do receptor.
Apesar de soar estranho para muitos, a ideia por trás do procedimento remonta há milhares de anos. O primeiro registro sobre seu uso está em um dos mais antigos textos de medicina, encontrado em uma antiga tumba na China e chamado “Cinquenta e duas fórmulas de tratamento”. Estima-se que o documento tenha sido escrito em 770 a.C. O transplante fecal foi denominado ali “suco de ouro” e indicado para desintoxicação do organismo.
Desde então, a transferência de fezes de um doador sadio para uma pessoa doente tem ocorrido de maneira bastante rudimentar. O primeiro trabalho descrevendo esse procedimento foi escrito em 1958 e, no Brasil, o primeiro transplante foi realizado em 2014. Hoje, a tecnologia evoluiu bastante: as fezes diluídas podem ser administradas utilizando sonda nasogástrica, mas normalmente são introduzidas via colonoscopia, procedimento invasivo que só pode ser realizado por um médico habilitado.
O método consiste na transferência de micro-organismos de uma pessoa para outra, a fim de restabelecer o equilíbrio da microbiota intestinal. Como os resultados obtidos por meio da alimentação e/ou uso de probióticos são lentos, o transplante é uma maneira natural, rápida e efetiva de modificar uma microbiota desequilibrada.
Mas quando seria indicado o transplante de fezes? Uma maneira interessante de responder a essa pergunta é verificar quantos ensaios clínicos (testes utilizados para entender se um medicamento ou procedimento médico realmente funciona) estão sendo conduzidos ao redor do mundo, registrados oficialmente no site Clinicaltrials.gov.
Em pesquisa realizada no dia 8 de abril utilizando o termo “fecal microbial transplantation”, foram encontrados 321 registros, com 41 indicações clínicas diferentes. Dentre as indicações, podemos citar colite ulcerativa, síndrome do intestino irritável, doença do enxerto contra o hospedeiro, obesidade, colonização intestinal por bactérias multirresistentes, autismo, depressão, constipação, hepatite não alcoólica, Alzheimer, entre outras. No exterior, aliás, a técnica já vem sendo aplicada em várias dessas condições.
Mas, se o transplante de fezes pode ser útil como adjuvante no tratamento de tantas patologias com características diferentes e exibe resultados promissores nas pesquisas, o que o impede de ser realizado com mais frequência? O grande entrave para sua utilização em larga escala ainda é a segurança biológica.
Imaginar que uma pessoa, ao receber esse material repleto de micro-organismos, possa acidentalmente adquirir doenças, não é nada absurdo. Para garantir que isso não ocorra, alguns cuidados precisam ser garantidos. A triagem de doadores, a fim de verificar algumas condições básicas de saúde, se faz necessária.
Indica-se, por exemplo, que sejam realizados testes em cinco etapas — se não passar na primeira, não avança para a segunda, e assim por diante. Nelas são aplicados questionários sobre hábitos e o histórico de saúde do doador, testes laboratoriais para detectar micróbios patogênicos, exames físicos do paciente, entrevista com psicólogo e sequenciamento genético do microbioma.
É importante salientar que nenhum transplante, nem mesmo uma transfusão sanguínea, é 100 % seguro. Nem por isso devem deixar de ser realizados em face do benefício que podem oferecer, melhorando a qualidade de vida das pessoas. Atualmente, o transplante fecal é autorizado no Brasil apenas no tratamento de infecções intestinais graves causadas pela bactéria Clostridioides difficile.
A história do transplante de fezes no Brasil está apenas começando. É uma técnica simples e barata que, desde que realizada por profissionais capacitados e com a devida segurança biológica, pode trazer inúmeros benefícios à população.
* Alessandro Silveira é PhD em microbiologia, professor universitário e autor de O Lado Bom das Bactérias (Editora Gente) – clique para comprar