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O cuidado, a canção e a despedida: Preta Gil não “perdeu” para o câncer

Reduzir sua trajetória a uma “guerra” que acabou com uma “derrota” apaga as partes mais importantes de sua trajetória com a doença

Por Gustavo Faibischew Prado, pneumologista*
Atualizado em 22 jul 2025, 09h43 - Publicado em 22 jul 2025, 09h36
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Interpretação de Drão por Preta Gil e Gilberto Gil em abril deste ano entrou para a história  (Instagram/Reprodução)
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A morte de Preta Gil neste dia 20 de julho comoveu o país (pauso, penso…), mas esse texto não é um obituário. Está bem distante, aliás, do caráter pré-fabricado e biográfico deles. Escrevo agora não apenas sobre ela, mas sobre o desafio de escrever.

E de como perpetuamos vícios de estilo sem refletir sobre como, mais uma vez, eles sequestram o discurso e aprisionam o sujeito. E então, sobre a escrita e os modos que escolhemos para falar da dor e do adeus, nada parece mais oportuno do que prestar atenção ao que dissemos sobre ela, não sobre sua “guerra”.

Muito além de sua trajetória artística, foi a maneira de viver e compartilhar o processo do adoecimento que parece ter tocado a todos: a generosidade com que dividiu fraquezas, medos, dores… e a coragem de ser vulnerável em público.

Desde o diagnóstico até seus últimos dias, Preta foi acompanhada de um olhar de admiração coletiva. Mas, junto a essa admiração, surgiram também as velhas metáforas a que frequentemente recorremos quando tentamos nomear os papéis que a vida por vezes impõe e as trajetórias que trilhamos: “guerreira”, “batalha”, “luta até o fim”.

São expressões familiares, bem-intencionadas, mas que simplificam, reduzem e distorcem experiências humanas complexas e permeadas de sentimentos tão delicados.

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Preta Gil não “perdeu a batalha contra o câncer: ela viveu sua doença com a mesma autenticidade que marcou sua carreira e sua vida pública: sem filtros, afetiva (e afetuosa) e aberta. Ao compartilhar as dores, os receios e até os efeitos colaterais de seu tratamento, ela nos ensinou sobre coragem; mas não a coragem dos campos de batalha, e sim a coragem desarmada e humana de ser vista integralmente.

Esse sentimento ficou especialmente visível em abril deste ano, quando subiu ao palco em São Paulo para cantar Drão ao lado do pai, Gilberto Gil. Visivelmente debilitada, Preta precisou de ajuda para caminhar e sentou-se ao lado dele no palco.

A cena transcendeu a fragilidade física: foi um momento de profundo afeto e comunhão. Gil, emocionado, teve dificuldade de cantar alguns trechos, enquanto Preta sorria e entoava versos que falam sobre o amor que se transforma, que resiste e permanece.

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Ali, diante de dezenas de milhares de pessoas, os dois viveram um instante doce, dolorido e suspenso no tempo-espaço que nenhum campo de batalha poderia explicar: a delicadeza do cuidado mútuo, a vulnerabilidade partilhada, o amor como elo maior, que não precisa de metáforas de guerra para ser entendido.

Reduzir sua trajetória a uma “guerra” que acabou com uma “derrota” apaga talvez a parte mais essencial desse caminho. Porque viver com câncer não é sobre vencer ou perder. É sobre viver, com tudo o que isso implica: limites, alegrias, sofrimento, amor e, sim, a consciência da finitude.

Talvez seja hora de repensarmos como nos referimos à doença e à morte em nossas conversas, notícias e homenagens. A metáfora militar pode soar inspiradora, mas traz consigo uma carga de expectativas: que o paciente lute sempre, que seja positivo o tempo todo, que encare cada complicação como um obstáculo a superar e, se não “vence”, que algo lhe faltou.

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Ao invés disso, poderíamos permitir que as narrativas sobre o adoecer incluam espaço para fragilidade e acolhimento, sem que isso soe como desistência ou fracasso. Preta Gil não foi “derrotada” pelo câncer. Ela nos mostrou que é possível viver plenamente até os últimos dias, mesmo com uma doença grave.

E quando as palavras nos faltam, como tantas vezes ocorre diante da morte, talvez possamos escolher termos mais simples, mais honestos, que expressem amor sem impor heroísmos.

Porque ninguém deve carregar, nem em vida nem depois da morte, o peso de ter sido “um guerreiro que perdeu”.

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“Se o amor é como um grão
Morre, nasce, trigo
Vive, morre, pão”

*Gustavo Faibischew Prado é pneumologista, coordenador do Comitê Científico de Câncer da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e coordenador de Pneumologia da Rede D’Or (SP-Leste)

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