Não é uma guerra: por que precisamos repensar metáforas contra o câncer
O uso de expressões bélicas ou militares no contexto de doenças, particularmente do câncer, pode ser problemático

“Não quero o êxtase nem os tormentos
Não quero o que a terra só dá com trabalho (…)
Não quero combater
Não quero ser soldado
Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.”
Assim pontificou o poeta Manuel Bandeira nos versos de Belo Belo, uma de suas criações publicadas no livro Libertinagem em 1930 (Clique para comprar*).
Partimos desse poema para meditar sobre quão sedutoras e traiçoeiras são as metáforas bélicas ou militares quando falamos de doenças, particularmente do câncer.
O fato é que, desde o diagnóstico, o paciente é frequentemente alistado, sem escolha, em uma guerra pessoal. Dizemos que ele tem que ser forte, que precisa lutar, que não pode desistir.
Se a doença avança, “o inimigo foi implacável”; se ele perece, “perdeu a batalha”. Essas expressões são tão enraizadas na nossa linguagem médica, jornalística e cotidiana que raramente paramos para questioná-las. Mas deveríamos.
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A guerra é um cenário de crueldade e sacrifício; e as nossas percepções desses eventos desoladores mais recentes, especialmente os transcorridos desde as primeiras décadas do século 20 até os dias de hoje, mostram-nos de forma contundente que não há nada de romântico nelas.
Como médicos e pacientes, a exemplo dos autores deste artigo, cabe a nós inquirir por que nos tornamos reféns dessas metáforas — e até que ponto elas são contraproducentes ao encararmos uma doença.
A partir de agora, compartilharemos, entre aspas, as vivências de um de nós diante de um diagnóstico de câncer de mama, entremeando a essas experiências reflexões para uma nova visão, mais autêntica, realista e sensível, sobre a “guerra contra o câncer”.
“Demorei anos para compreender por que me incomodava ser chamada de ‘guerreira’, especialmente quando, em momentos de vulnerabilidade, surgiam comentários que reforçavam essa ‘batalha’. Essa metáfora impõe um peso desnecessário e alimenta uma culpa que ignora toda a complexidade do processo de adoecer.”
Tais imagens e comparações que criamos partem de duas premissas: há um inimigo (a doença) e um objetivo claro: vencer. No entanto, e infelizmente, doenças não são adversários passíveis de ser derrotados pela força de vontade ou atitude positiva, assim como pacientes não são soldados que falham quando o tratamento não traz o efeito desejado.
“Durante o tratamento, não estava lutando contra algo; estava simplesmente vivendo um dia de cada vez. Falar em luta dá a impressão de que basta ter força de vontade para vencer, mas com a doença isso não funciona assim.”
O problema dessas metáforas não é apenas teórico. No dia a dia de convívio e cuidado com os pacientes, percebe-se que elas impõem uma carga emocional pesadíssima, além de reduzir e sequestrar nosso discurso, que deveria ser acolhedor e compassivo, para uma preparação motivacional à moda coach.
Só que, no fundo, isso nos aparta do paciente, ensurdece nossa escuta, invisibiliza e deslegitima o sofrimento humano e, claro, deposita tudo o que pode haver de imponderável no processo de adoecimento sobre as costas do “soldado”.
Isso pode ser especialmente cruel quando aplicado a pacientes com câncer. Para muitos familiares, enxergar o companheiro, o pai, o filho ou o irmão como um guerreiro pode ser uma tentativa de dar sentido a um sofrimento imensurável, de nomear o inominável, de ordenar o caos.
Mas essa mesma metáfora pode colocar (mais) um peso insustentável em seus ombros. E se ele não aguenta mais? Se chora de dor? Se não quer mais ser “forte”? A noção de que “desistir” seria uma rendição cria um ciclo de angústia tanto para o paciente quanto para quem o ama.
Mas será que um paciente precisa ser um guerreiro? Será que adoecer deve ser uma batalha? Entre a dor, os temores e as tantas incertezas, talvez o que precisemos não seja uma convocação ao combate, mas uma escuta mais sensível e um discurso que acolha — e não que imponha uma luta a qualquer preço.
“Ao enfrentar a segunda recidiva, a pergunta se fez inevitável: será que eu não lutei o suficiente? Essa sensação de culpa, ao sugerir que algo mais poderia ter mudado o desfecho, só aumenta a dor dos momentos difíceis.”
E o que acontece quando percebemos que algumas doenças não podem ser vencidas, apenas controladas? Que viver com uma condição crônica não é um fracasso? Que aceitar os limites do tratamento não é rendição, mas uma forma legítima de cuidado?
Isso não significa que devamos eliminar todas as metáforas — elas fazem parte da forma como damos sentido ao mundo. Mas talvez possamos escolher melhor quais usamos.
“Se compararmos a doença a uma guerra, o câncer não joga limpo. Não há estratégia garantida e, muitas vezes, é uma batalha interminável que exige adaptação, convivência e manejo. Viver com a doença não significa perder — nem todos os dias precisamos ser soldados ou heróis.”
Se insistirmos em comparar o adoecimento a uma guerra, estaremos sempre procurando vencedores e derrotados. Quem sabe devêssemos enxergar esse desafio como uma jornada — com momentos difíceis e outros mais leves, com estradas incertas e inesperadas, mas sem uma linha de chegada única ou um desfecho predeterminado.
O adoecimento já é por si um caminho difícil; não precisa ser um campo de batalha. A jornada do tratamento deve permitir que o sofrimento seja externado, validado e acolhido; que o paciente encontre apoio e que se permita também não estar o tempo inteiro animado.
E todos nós, como participantes de uma rede de cuidado, podemos nos investir de outros papéis, como apoiadores, parceiros e amigos. Porque, sim, adoecemos; e morreremos um dia também.
Mas a vida, a morte e tudo de mais belo (e também desafiador) que existe e ocorre entre elas podem (ou deveriam) ser mais leves. Afinal, ninguém deveria morrer achando que perdeu.
*Thais Azzi Gonçalves, dentista, coordenadora de Saúde Bucal do SESC-SP (Unidade Florêncio de Abreu) e já teve diagnóstico de câncer de mama.
*Gustavo Faibischew Prado, pneumologista, coordenador do Comitê Científico de Câncer da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e coordenador de Pneumologia da Rede D’Or (SP-Leste).