No início dos anos 2000, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançava o aviso de que o século 21 seria o período da psiquiatria para a medicina. Vinte anos após a predição, jamais houve tantos casos de pessoas em tratamento psiquiátrico. Por outra via, novos campos de atuação na área se abriram, desde mudanças nas definições diagnósticas até a adoção de instrumentos científicos, testes genéticos e marcadores biológicos para determinadas condições.
O Brasil sustenta um dos maiores complexos de saúde do mundo, o SUS. Esse colosso garante cuidados para 80% da população do país, mesmo que combalido pelo desinvestimento do setor público nos últimos seis anos. Considerando o cenário pós-pandemia, como esse sistema dará acesso às novas tecnologias de diagnóstico e tratamento?
Hoje a comunidade médica sabe que a refratariedade aos medicamentos está ligada ao modo como o organismo do paciente absorve, metaboliza e reage a cada fármaco. Se o indivíduo nasce produzindo mais enzimas que degradam determinado remédio, ele durará menos tempo no organismo e terá um efeito menos intenso. Trata-se de algo relativamente comum na psiquiatria.
Atualmente já é possível fazer um mapa genético que fornece informações sobre como cada medicação produzirá efeito e será eliminada do organismo. O recurso pode poupar muitos insucessos e economizar tempo no tratamento psiquiátrico.
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Outra descoberta recente é a relação do surgimento de quadros como depressão e ansiedade (e a dificuldade em obter sucesso em seus tratamentos) com a produção deficitária da vitamina metilfolato, a forma ativa da vitamina B9. Isso ocorre devido a uma variação genética comum que atinge 10% da população em sua forma mais intensa e até 39%, em sua forma mais atenuada.
Essa variação ocorre na produção de uma enzima responsável pela transformação da vitamina B9 no metilfolato dentro do corpo humano. Com pouco metilfolato, o cérebro demora mais para sintetizar os principais neurotransmissores (serotonina, dopamina e noradrenalina), ficando com menos dessas substâncias disponíveis para recrutar em caso de necessidade. Isso impacta, portanto, o tratamento de algumas condições.
Apesar de atingir uma parcela significativa da população, ainda não há pesquisas indicando que o exame de detecção dessa mutação tenha de ser feito de forma irrestrita. Na realidade, hoje somente pessoas que têm condições financeiras têm acesso ao recurso. Considerando o custo elevado da tecnologia para a maioria da população, algo que não se restringe a esse exame, seria exagero perguntar se estamos diante de uma situação de injustiça biopsíquica?
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Não podemos nos furtar mais a esse tipo de questão. A história psiquiátrica de cada um não é somente reflexo das derivas biográficas individuais, mas depende também das raízes genéticas, biológicas, e suas complexas interações com os contextos sociais, ambientais, culturais e políticos.
A descoberta de novos exames e tratamentos demanda uma compreensão à altura da complexidade de como esses elementos estão intrincados. E uma reflexão sobre quem, de fato, terá acesso a essas inovações da medicina.
Como faremos uma política de saúde mental sem fecharmos os olhos para o que desponta em novos horizontes? Estamos atentos a eles?
* Alexandre Valverde é psiquiatra, com master em Filosofia Contemporânea, e autor do livro Ruptura, Solidão e Desordem – Ensaio sobre Fenomenologia do Delírio (FAP-Unifesp)