EUA vão mesmo descobrir as causas do autismo até setembro?
Qualquer promessa sobre pesquisas que revelem rapidamente "as verdadeiras causas" do transtorno não passa de bravata

Recentemente, uma promessa abalou as comunidades relacionadas ao autismo: o compromisso assumido pelo Secretário de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr., de que até setembro uma série de estudos revelaria as causas do transtorno do espectro autista (TEA).
Sendo mais específico, ele supostamente revelaria quais toxinas estariam provocando uma “epidemia” desta condição.
Só que, até agora, os estudos científicos mais rigorosos apontam que de 98% a 99% da causalidade do TEA é genética e que não há uma epidemia de autismo — até por que essa expressão não se aplica a uma condição genética — e que a explosão de diagnósticos é decorrente sobretudo do aumento de informações, de melhor formação médica e da ampliação do próprio conceito do que seja o autismo.
+Leia também: A redescoberta do autismo
Mas a ciência não oferece verdades talhadas em pedra e há os que advogam a tese de que há um aumento real e expressivo da quantidade de pessoas autistas e que, portanto, causas ambientais até agora não desvendadas estão atuando para esse aumento. Esta é a tese a que o sistema estadunidense de saúde aderiu.
É impossível que haja fatores ambientais potencializando de modo significativo o autismo? Não! É possível que alguma pesquisa revele essas causas até setembro? Não!
Mesmo se ela for fartamente financiada e com os melhores e inúmeros cientistas, das melhores universidades à sua disposição? Não, assim como nove mulheres não fazem um bebê em um mês, nem todos os cientistas do mundo conseguiriam a façanha de avaliar cientificamente os fatores associados ao TEA até setembro.
Como estudar as causas do autismo?
Imagine, por exemplo, que quiséssemos avaliar os impactos do consumo de microplásticos em gerar filhos autistas ou de um bebê não-autista se tornar autista? Importante lembrar que a ciência atual, com as evidências que temos hoje disponíveis, considera o autismo sempre congênito.
Uma pesquisa capaz de revelar os impactos dos microplásticos no TEA deveria observar seus níveis em diversas sociedades que consomem ou não consomem produtos com sua presença, durante muitos e muitos anos (talvez décadas) e correlacionar com os números do autismo, promovendo avaliações diagnósticas homogêneas.
Talvez seria necessário que esse estudo fosse realizado pelo mesmo grupo de avaliadores em todos esses lugares.
Outra possibilidade é “isolar” certas comunidades, como cidades e realizar políticas duras e consistentes de proibição e substituição de produtos com microplásticos em metade dessas cidades (divididas por sorteio) e então fazer avaliações massivas e homogêneas de TEA em todas essas populações.
Isto provavelmente permitiria que em alguns anos, talvez uma década, tivéssemos essa resposta.
+Leia também: Como interpretar um estudo científico?
Outras avaliações seriam muito mais difíceis, como alimentação, já que as pessoas consomem muitas coisas e alimentos dificilmente poderiam ser proibidos em certa região.
O estudo sobre a poluição do ar também seria um grande desafio, já que os ventos não respeitam delimitações estabelecidas por pesquisadores. Além disso, há centenas de outros candidatos a “toxinas” que podem exercer influência sobre nós, seres humanos, em sociedades complexas como as nossas.
Qualquer promessa sobre pesquisas que revelem “as verdadeiras causas do autismo”, que não venham acompanhadas de muitos bilhões de dólares e algumas décadas não é uma promessa, é uma bravata. Infelizmente, a ciência é lenta. Poderíamos dizer até, parafraseando Churchill, que a ciência é o pior conhecimento que existe, exceto todos os outros!
*Lucelmo Lacerda é doutor em educação, pesquisador, ativista do TEA e autor de “Crítica à pseudociência em educação especial: Trilhas de uma educação inclusiva baseada em evidências”