O racismo estrutural tem deixado marcas profundas na saúde mental de muitas mulheres negras no Brasil.
O filme “Ó Pai, Ó”, protagonizado pelo incrível ator Lázaro Ramos, ilustra de maneira pungente como estereótipos arraigados perpetuam a noção de que pessoas negras, especialmente as mulheres, possuem uma resistência extraordinária à dor e à pressão, em comparação às pessoas brancas.
Essa percepção, que deveria ser questionada e combatida, muitas vezes resulta em negligência e falta de apoio em diversos ambientes.
No filme, essa reflexão é apresentada de forma vívida. Os personagens, ao discutir a diversidade cultural, revelam também as experiências emocionais universais que transcendem as diferenças de cor de pele. A interação entre os personagens Roque e Boca destaca que todos, independentemente de cor ou gênero, compartilham vivências humanas comuns, como o riso, o choro, a dor e o sofrimento.
Apesar dessa universalidade emocional, mulheres negras frequentemente relatam experiências dolorosas de omissão de socorro e falta de empatia por parte dos profissionais de saúde. Essa realidade é o reflexo de uma construção histórica que desumaniza e subestima as necessidades emocionais das mulheres negras, tratando-as de maneira desigual no sistema de saúde.
Buscar ajuda, para muitas delas, torna-se uma jornada desencorajadora e frustrante, exacerbando problemas de saúde mental como ansiedade e depressão, bem como condições físicas como diabetes e hipertensão.
Um estudo conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), intitulado A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil, traz à tona uma realidade alarmante sobre o tratamento diferenciado dado às mulheres negras durante a gestação e o parto no país.
A pesquisa revela que, embora as mulheres negras sofram menos episiotomias em comparação às mulheres brancas, têm 50% menos chances de receber anestesia durante o procedimento, quando ele é realizado.
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E as dificuldades enfrentadas no sistema de saúde são apenas uma faceta do desafio. No ambiente corporativo, as mulheres negras também enfrentam obstáculos significativos ao serem frequentemente sujeitas a microagressões e comentários que perpetuam estereótipos prejudiciais, como o de que são agressivas ou não qualificadas.
Além disso, aspectos da sua imagem corporal, como higiene pessoal e cuidados com o cabelo, são questionados, afetando negativamente suas oportunidades profissionais e seu bem-estar psicológico.
Os estereótipos de força e resiliência têm um impacto devastador na saúde mental das mulheres negras, pois ao serem vistas como “super-humanas” ou inabaláveis, muitas vezes têm suas queixas menosprezadas ao buscar ajuda de profissionais de saúde ou enfrentar situações de estresse emocional, o que aumenta os índices de transtornos psicológicos.
Como médica e mulher negra, vejo nessa dinâmica de não receber o suporte necessário uma forma de perpetuar problemas, criando um ambiente em que as mulheres negras se sentem isoladas e desvalorizadas em suas próprias experiências emocionais.
O ciclo vicioso de falta de apoio emocional e estigmatização contribui para uma deterioração adicional da saúde mental, aumentando a vulnerabilidade a questões de saúde psíquica.
Além da inclusão
Acredito que a promoção da saúde das mulheres negras deve ir além de políticas de inclusão. É necessário pensar em estratégias que rompam com a estrutura de negligência, invisibilização e violações da saúde, reconhecendo e enfrentando os sofrimentos e a negação do adoecimento.
Essa abordagem integral é essencial para criar um ambiente verdadeiramente acolhedor e saudável para todas as mulheres, independentemente de sua origem étnica, permitindo que prosperem e alcancem seu pleno potencial na saúde e no trabalho.
Enquanto sociedade, é crucial nos lembrarmos diariamente dessa universalidade das emoções humanas, mas reconhecendo e valorizando as experiências individuais de cada mulher, incluindo as mulheres pretas e pardas.
E nós, mulheres negras, precisamos ter em mente sempre que a verdadeira força não está em suportar sozinha o peso do mundo e nem aceitar a capa de super heroína imposta pela nossa socialização, mas em ter a coragem de buscar apoio e cuidado, reconhecendo a humanidade que nos une e fazendo da nossa existência plena um ato de resistência.
*Simone Nascimento é médica com capacitação em saúde mental e bem-estar corporativo