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Doação de sangue por homens gays: o fim de uma proibição preconceituosa

Especialista relembra da história por trás dessa restrição discriminatória, recentemente revogada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)

Por János Valery Gyuricza, médico de família*
14 jun 2020, 17h43
gay pode doar sangue?
O STF derrubou a restrição que proibia homossexuais de doarem sangue. (Foto: GI/Getty Images)
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No dia 8 de maio de 2020, o STF derrubou a restrição que proibia homossexuais de doarem sangue. A votação considerou discriminatórias as regras da Anvisa e do Ministério de Saúde, que vetavam o ato, tornando-as inconstitucionais. O tema já era discutido há anos e o julgamento em si teve início em 2017, quando foi interrompido por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

Três anos depois e em meio a uma pandemia de coronavírus que levou os hemocentros de todo o país a baixíssimos níveis de doação, a medida foi revisitada e a doação, enfim, liberada.

Mas, antes de tudo, é importante compreender como essa intolerância se propagou, batalhar a desinformação causada pela mesma e, por fim, nos questionarmos: por que a doação de sangue por homens gays ainda é um tabu tão enraizado?

Essa visão deriva de um resquício histórico preconceituoso causado pela epidemia de aids e HIV nas décadas de 1980 e 1990, que assombrou o país, conforme explica o Dr. Dráuzio Varella:

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“Quando ainda nem havia o teste para o HIV, o simples fato de ser homossexual colocava a pessoa em suspeita para doar sangue. Por isso, se criou nos bancos de sangue essa restrição, que hoje não tem mais nenhum sentido em existir”.

Naqueles anos, ser gay comumente era visto como um sinônimo de carregar o vírus, que não possuía tratamento na época. A aids vitimou milhares de pessoas, incluindo famosos como Cazuza, Freddie Mercury e Wagner Bello.

Foi então que surgiu o chamado grupo de risco para o HIV: gays, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis. Isso não veio da discriminação, mas de um fato científico imaturo. Com o amadurecimento dos estudos, a ciência nos mostrou que não era o homem gay o símbolo da doença, mas sim o sexo desprotegido. Não era a hemofilia, mas sim a transfusão de sangue não testado. Não era a droga injetável, mas sim o compartilhamento das seringas.

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Com o avanço da ciência e a educação da sociedade, o conceito de “grupo de risco” foi deixado para trás, sendo substituído por “comportamento de risco”.

Praticar relações sexuais sem usar preservativos é um risco para a infecção pelo HIV. E isso independe da orientação sexual e de gênero dos envolvidos.

Além disso, os processos nos hemocentros foram aprimorados. Hoje, todas as amostras de sangue são testadas para diversas doenças, não só o HIV. E o doador pode indicar que realizou algum comportamento de risco logo antes da doação. Nesses casos, a coleta é realizada, mas muitas vezes o sangue é descartado.

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Portarias e contradições entre o Ministério da Saúde

A proibição da doação de sangue por homens gays também é herança de regulamentações antigas — e diversas vezes infundadas — do Ministério da Saúde. A Resolução da Diretoria Colegiada nº 153, desenvolvida em 2004 e replicada em 2013 pelo órgão, é um exemplo disso. De acordo com o texto, deve considerar-se inapto à doação o candidato homem que tenha tido “relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”.

Marginalizando e excluindo homens gays da doação, o próprio texto se contradiz em seguida, onde alega que, na doação, é obrigatório ter “isenção de manifestações de juízo de valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, cor ou etnia, dentre outras, sem prejuízo à segurança do receptor.”

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A proibição ainda ia contra o artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Lorelay Fox, drag queen e youtuber, também comenta o fato de que muitas pessoas fora do meio LGBTQI+ não conheciam essa restrição e que derrubá-la é um passo a mais para um mundo melhor:

“O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer o casamento homoafetivo, muito antes dos Estados Unidos, por exemplo. Fomos referência para muitos países. Derrubar essa lei arcaica é uma conquista para nossos bancos de sangue e para o debate global como sociedade. E é mais um marco para as pessoas lembrarem que a gente é igual”.

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Na contramão do mundo

Para os especialistas, a proibição também ignorava o crescimento do HIV no Brasil, principalmente em heterossexuais e idosos (nesse último grupo, especialmente nas mulheres).

Entre 2010 e 2018, por exemplo, houve aumento de 21% em novas infecções por HIV no país, de acordo com o Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/AIDS, o Unaids. No entanto, esses diagnósticos não eram exclusivos dos grupos LGBTQI+.

Os dados do boletim epidemiológico HIV/Aids de 2019, divulgado pelo Ministério da Saúde, mostram ainda que, nos últimos dez anos, o número de pessoas da terceira idade com HIV cresceu 103%, fruto dos remédios contra disfunção erétil e da recusa no uso de preservativos.

A doação de sangue de uma pessoa, seja ela LGBTQI+ ou não, faz a diferença para a vida de muitos. Deixemos esse passado discriminatório para trás.

* János Valery Gyuricza é Head de Medicina na Cuidas, startup que conecta empresas com médicos e enfermeiros para atendimentos no próprio local de trabalho. Médico formado pela Universidade de São Paulo, com residência em Medicina de Família e Comunidade no Hospital das Clínicas, na mesma universidade. É doutorando pelo Departamento de Medicina Preventiva (USP), em parceria com a Research Unit for General Practice da Universidade de Copenhague.

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