Como se define o preço de um medicamento inovador?
Novos remédios podem transformar a vida de pacientes e, ao mesmo tempo, onerar o sistema de saúde

Sempre que uma nova terapia chega ao mercado — trazendo a promessa de transformar a vida de pacientes e, ao mesmo tempo, impondo um alto custo aos sistemas de saúde — ressurge a mesma pergunta no debate público: afinal, como se define o preço de um medicamento inovador?
Nos últimos dez anos, presenciamos a chegada do “comprimido de mil dólares” para hepatite C, de terapias gênicas que ultrapassam três milhões de dólares por aplicação única, e, mais recentemente, de tratamentos de uso contínuo com custos estimados em mais de 20 milhões de dólares ao longo da vida de um único paciente.
A aprovação na Europa da B-VEC (Beremagene Geperpavec), terapia gênica para epidermólise bolhosa distrófica — uma doença rara e debilitante — reacendeu esse debate.
A verdade é que não existe uma única resposta para a pergunta. Empresas, reguladores, profissionais da saúde, hospitais e pacientes oferecem perspectivas distintas, cada qual com elementos válidos, mas nenhuma isoladamente dá conta da complexidade envolvida.
O sistema global de precificação de medicamentos é uma engrenagem intrincada, isto é, difícil de entender, de explicar e de resolver, e muitas vezes além do controle individual de países.
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No Brasil, os preços de medicamentos inovadores são definidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), com base em normas estabelecidas em 2004 e que estão atualmente em revisão.
O modelo adotado, de forma geral, considera o menor preço praticado entre uma lista de oito países, incluindo a nação de origem do produto.
Em breve, essa lista poderá ser ampliada com a inclusão de outros seis mercados (está aberta uma consulta pública para rever a norma atual). Essa comparação internacional tem sido um pilar das decisões regulatórias nacionais.
O impulso por inovação é legítimo e necessário: doenças raras, crônicas e degenerativas exigem novas soluções que restaurem a qualidade de vida e ampliem horizontes terapêuticos.
As empresas farmacêuticas cumprem um papel crucial nesse processo, com a missão declarada de gerar valor por meio da ciência e da inovação. Contudo, operam sob a lógica do mercado financeiro, pressionadas por investidores a entregar lucro, mitigar riscos e conter custos.
Em terapias altamente inovadoras, controlar riscos e custos é um desafio, o que desloca o foco para os preços como principal variável de retorno.
Essa dinâmica é acentuada pelo peso dos Estados Unidos no mercado global, onde não há controle de preços. O país responde por quase metade do faturamento mundial da indústria farmacêutica.
Assim, as empresas tendem a estabelecer preços elevados nesse mercado como referência internacional — o que inevitavelmente pode impactar outros países, inclusive o Brasil.
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Outro elemento importante são as incertezas científicas. Muitas inovações são aprovadas com base em evidências limitadas.
No caso da B-VEC, por exemplo, foram autorizadas duas indicações, mesmo com apenas um único paciente incluído no estudo clínico para a forma autossômica dominante. Isso levanta preocupações legítimas sobre a robustez das evidências clínicas e os critérios de aprovação utilizados, especialmente diante de terapias com preços tão elevados.
Enquanto isso, observamos uma tendência global à confidencialidade nas negociações. Governos e hospitais firmam acordos de preços com cláusulas sigilosas, que incluem descontos, volumes e modelos de pagamento por desempenho.
Esse sigilo compromete a transparência — princípio presente no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 16 da ONU — e dificulta comparações, alimentando desigualdades.
A China, por exemplo, obteve reduções de até 94% em medicamentos inovadores por meio de negociações centralizadas e que somente vieram a público por meio da imprensa. O próprio Reino Unido tem se valido deste método para alguns contratos de novas tecnologias em saúde.
A falta de transparência compromete todos os elos do ecossistema de saúde, alimentando a percepção de que a discussão sobre preços de medicamentos inovadores segue presa a uma lógica binária — com ganhadores previsíveis (acionistas, patentes, investidores) e perdedores recorrentes (pacientes, sistemas públicos, populações vulneráveis). Esse modelo, cada vez mais, mostra sinais de esgotamento.
Nesse contexto, o Brasil tem buscado alternativas para superar esse desafio. Apesar das limitações, o país tem exemplos bem-sucedidos de atuação coordenada que garantiram acesso a tecnologias inovadoras.
No caso da hepatite C, uma articulação entre Anvisa, Conitec, Ministério da Saúde, comunidade médica e indústria farmacêutica permitiu a incorporação rápida da chamada “pílula de mil dólares” ao Sistema Único de Saúde (SUS) com preços muito mais acessíveis.
Mais recentemente, a adoção de uma terapia gênica com modelo de pagamento por performance representa um novo marco, pois vincula o pagamento à efetividade clínica comprovada no país. Outro exemplo é a introdução de vacinas, como a do rotavírus, por meio de parcerias público-privadas.
A iniciativa Nova Indústria Brasil (NIB) representa também uma nova oportunidade para articular ciência, produção, avaliação e acesso em torno de uma missão nacional.
Como defende a economista Mariana Mazzucato, no livro Missão economia: Um guia inovador para mudar o capitalismo (Portfolio-Penguin – clique para comprar*), o papel do Estado moderno vai além de corrigir falhas de mercado: ele deve estruturar mercados, moldando direções estratégicas em nome do bem comum.
Não se trata apenas de produzir localmente o que já existe, mas de impulsionar a fronteira da ciência e da tecnologia em saúde com uma governança robusta, transparente e orientada por propósito.
O Brasil, com sua tradição de saúde pública universal e exemplos concretos de articulação bem-sucedida entre Estado, academia, setor produtivo e sociedade civil, tem as ferramentas para liderar essa transformação.
Este não é um desafio isolado. É sistêmico. E só será superado com soluções igualmente sistêmicas, construídas a muitas mãos, com coragem, transparência e propósito.
*Antonio Carlos Matos da Silva é mestre em farmácia, especialista em acesso à saúde e mestrando em políticas públicas FGV.