O último dia 30 de janeiro marcou o primeiro Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs), um esforço de mais de 280 instituições de pesquisa, organizações da sociedade civil, empresas e governos ao redor do mundo para expressar a necessidade urgente de reunir esforços e investimentos globais para esse tema.
Não se trata de uma data comemorativa, apesar de todas as inúmeras conquistas alcançadas ao longo de décadas no controle dessas enfermidades. Mas a data é especial na medida em que traz a oportunidade de notabilizar um dos maiores problemas de saúde pública com consequências socioeconômicas calamitosas — doenças que mostram uma das faces mais cruéis da desigualdade de um mundo globalizado.
As DTNs afetam 1,6 bilhão de pessoas em mais de 150 países, sobretudo as mais pobres e desfavorecidas em regiões tropicais e subtropicais do planeta, principalmente na África, na Ásia, na América Latina e no Caribe. O número de mortes pode chegar a 500 mil ao ano, com o agravante de causar grande sofrimento e incapacidade permanente em homens, mulheres e crianças. São gerações perdidas e condenadas à doença e à miséria.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as DTNs são representadas atualmente por 20 condições. Algumas são muito conhecidas por nós, como a doença de Chagas, a leishmaniose, a hanseníase, a dengue e chikungunya, a esquistossomose e a raiva. Embora estejam presentes em nosso planeta há milhares de anos, seguem sem ser erradicadas.
O Brasil, que reúne em seu território todas as doenças listadas pela OMS, é líder da América Latina em número de casos de doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase, dengue e esquistossomose.
Marco importante em 2012, a Declaração de Londres sobre Doenças Tropicais Negligenciadas projetou o controle, eliminação ou erradicação de dez doenças até 2020, mas não alcançou seus objetivos, tornando notável que o mundo precisa fazer muito mais para combater as DTNs.
A OMS, por sua vez, estabeleceu como meta acabar com elas até 2030, mas o histórico impõe a urgência de novos paradigmas e ações multilaterais de cooperação em educação, ciência, saúde, tecnologia, infraestrutura, planejamento estratégico, entre outros. Melhores métodos de diagnóstico, práticas de prevenção mais eficazes e novos medicamentos são necessários. Precisamos investir em inovação para alcançar o propósito de eliminar essas doenças.
Segundo o relatório do G-Finder 2019, principal plataforma que monitora o investimento global em pesquisa e desenvolvimento de produtos para doenças negligenciadas, o investimento para combater as DTNs foi quase 10% menor em 2018 em relação a 2009. Enquanto isso, o financiamento para HIV/Aids, tuberculose e malária decolaram nos últimos três anos. Não surpreende, portanto, o fato de que todas as inovações terapêuticas significativas das últimas décadas terem se destinado exatamente ao tratamento dessas doenças.
No século 21, por exemplo, não houve avanços em relação a novos fármacos representados pelas chamadas novas entidades químicas (NCEs). Das 428 NCEs que chegaram ao mercado farmacêutico, nenhuma foi indicada para o tratamento de qualquer uma das 20 doenças tropicais negligenciadas.
O Brasil, por sua vez, apresenta queda em investimentos nas cinco DTNs definidas pelo Ministério da Saúde como prioritárias. São elas: dengue, doença de Chagas, leishmaniose, hanseníase e esquistossomose. Dados do relatório G-Finder mostram que, entre 2007 e 2017, o financiamento caiu mais de 40% em todas as cinco áreas, com destaque para a hanseníase, com queda de 95%. É preciso lembrar que nosso país ocupa o segundo lugar no mundo em casos de hanseníase, logo atrás da Índia. Somente em 2018, mais de 28 mil novos casos foram notificados.
O cenário atual é desafiador. Que a criação dessa data e desse movimento reforce um compromisso improrrogável para todos nós: combater as doenças tropicais negligenciadas e salvar vidas.
* Dr. Adriano D. Andricopulo é especialista em química medicinal e planejamento de fármacos para doenças tropicais negligenciadas e professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo