O sucesso de uma série de TV que expõe o drama da saúde pública
Conversei com o cirurgião Márcio Maranhão, autor do livro que deu origem à série Sob Pressão, que esmiúça o dia a dia de médicos e pacientes brasileiros
Dr. Evandro não usa capa nem tem superpoderes, mas pode ser considerado um autêntico herói. De jaleco branco ou avental verde, ele salva vidas em um hospital público do subúrbio do Rio de Janeiro. “Ninguém morre no meu plantão”, costuma repetir enquanto empurra macas com pacientes ensanguentados rumo ao centro cirúrgico.
Desde que a série Sob Pressão estreou na TV Globo, em julho de 2017, o protagonista interpretado pelo ator Júlio Andrade já atendeu um garoto com um espeto de churrasco atravessado no peito, salvou o morador de uma favela de ser morto por um miliciano dentro do hospital e socorreu uma mulher esfaqueada em pleno shopping-center pelo marido.
As aventuras do intrépido cirurgião e sua equipe agradam tanto o público — cada episódio é visto, em média, por 40 milhões de espectadores — quanto à crítica. O seriado levou três troféus da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) e já foi vendido para Argentina, Itália e Portugal, entre outros países.
O homem por trás desse indiscutível sucesso é o cirurgião torácico Márcio Maranhão, de 49 anos. Foi ele quem escreveu, em 2014, o livro que deu origem à série: Sob Pressão – A Rotina de Guerra de Um Médico Brasileiro (Editora Foz). Nele, narrou os muitos percalços enfrentados em 15 anos de trabalho em hospitais estaduais e municipais do Rio. O Souza Aguiar, que apelidou de “Inferno de Dante”, foi um deles. Por falta de leito, perdeu as contas de quantas pequenas cirurgias ele improvisou sobre macas frias, em bancadas de pia ou até mesmo no chão.
Sob Pressão, atualmente exibida às quintas-feiras, não é a primeira incursão da TV Globo pelo universo das séries médicas. Evandro ainda não tinha prestado vestibular para Medicina quando Rodrigo Junqueira e Cristina Brandão, ginecologistas, já davam plantão no Centro Médico de Andorinhas e na Clínica Machado de Alencar, respectivamente. Os dois médicos foram interpretados por Francisco Cuoco em Obrigado, Doutor (1981) e por Patrícia Pillar em Mulher (1998-1999).
Pioneira no Brasil, Obrigado, Doutor reunia, entre roteiristas e colaboradores, dois médicos-escritores: o psiquiatra Roberto Freire (1927-2008) e o sanitarista Moacyr Scliar (1937-2011). O diretor Walter Avancini ainda contratou uma médica, Eliane Castelo Branco, para revisar os roteiros e acompanhar as gravações. É mais ou menos o papel que Maranhão desempenha como consultor técnico de Sob Pressão.
Nesta entrevista, Maranhão fala da vez em que entrou, sozinho e a pé, numa comunidade carente do Rio para atender uma criança com crise de asma, diz qual foi a única série médica a que assistiu até hoje e responde se o Dr. Evandro, de Sob Pressão, é autobiográfico ou não.
SAÚDE: Em 2014, você lançou o livro que revelava os bastidores da saúde pública do Rio. Cinco anos depois, a Globo estreia a terceira e última temporada da série Sob Pressão. Esperava tanto sucesso?
Márcio Maranhão: Os problemas na saúde pública sempre foram urgentes, recorrentes e comuns a todos nós. Não é à toa que a saúde é a maior preocupação dos brasileiros. Só esse contexto já contribuiria para toda a repercussão. Mas, além disso, o realismo retratado de forma visceral, a construção das histórias e a humanização dos personagens foram determinantes para o sucesso da série. Costumo dizer que, na saúde, todo mundo tem uma história para contar.
Por ocasião do lançamento do livro, houve quem rebatesse suas denúncias e dissesse que a realidade do sistema público de saúde não era aquela retratada no livro?
Retratei casos graves e recorrentes de má gestão e falta de infraestrutura nas emergências públicas do estado do Rio. Sabendo que a região Sudeste possui o maior número de leitos do SUS, segundo o Ministério da Saúde, em regiões como o Norte e o Nordeste, onde a disponibilidade de leitos é reduzida, os problemas são ainda piores. A realidade é desumana e, portanto, incontestável. Sob Pressão faz um recorte histórico e é, até então, atemporal.
Mas ressalto que o SUS não é só assunto para denúncias. Também é de conquistas. Possuímos o maior programa de tratamento de aids do planeta. Somos um dos centros globais de transplantes de órgãos. Temos um exitoso Programa Nacional de Imunização e um excelente Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que salva vidas. Em meio a um mar de descaso, sobrevivem ilhas de excelência. É preciso divulgar mais isso à população. Construir na cabeça do brasileiro a ideia de que o SUS é um projeto de país.
A terceira temporada vai mostrar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Qual a lembrança mais forte que você guarda dos quase dois anos em que trabalhou como plantonista do SAMU?
O medo me acompanhava nos atendimentos do SAMU que fazia em áreas perigosas da cidade. Mas nunca cheguei a temer pela minha vida. A necessidade premente de atendimento médico das pessoas do local tornava minha atividade muito valiosa e isso, de certa forma, me protegia. Lembro-me de um atendimento de prioridade máxima. Era o caso de um menino asmático de três anos em insuficiência respiratória. Um pai desesperado pedia ajuda. Minha base do SAMU ficava no Hospital Getúlio Vargas, na Penha. Era numa região com frequentes tiroteios.
Ao chegar com a ambulância próximo à localidade, escutei uma saraivada de tiros. Informei à base pelo rádio sobre o risco e perguntei se era possível o pai trazer o menino até a ambulância. A base respondeu que não, porque o pai tinha duas outras crianças menores. Informou também que o quadro do menino tinha se agravado. Não tive escolha. Entrei na comunidade a pé, carregando o material de primeiros socorros, uma bala de oxigênio e a prancha. Chego à casa e encontro o pai desesperado com o menino no colo, que mal respirava. Pego o menino, sento-me no chão e o coloco apoiado entre as minhas pernas. Faço uma nebulização e uma medicação na veia. Abraço o menino por trás e o mantenho sentado. O pai, desesperado, andava de um lado para o outro.
Foram minutos angustiantes. Até que, depois de algumas nebulizações, o menino melhora e adormece. A respiração torna-se tranquila. Devolvo-o, então, aos braços do pai. Naquele momento, percebo a emoção dele. Senti muito orgulho de estar ali e de pertencer ao SAMU. Perguntei o nome do menino e o pai me disse que se chamava Caio. Eu também tenho um filho que se chama Caio e que também tem asma. Essa é uma das lembranças que não esqueço e que conto no livro.
Na nova temporada, os personagens Evandro (Júlio Andrade) e Carolina (Marjorie Estiano) sonham em trabalhar na ONG de ajuda humanitária Médicos sem Fronteiras. Você já atuou lá? Como surgiu a ideia de falar do trabalho deles?
Os Médicos Sem Fronteiras têm entre seus princípios fundamentais a ética médica e a independência. É uma organização que oferece ajuda humanitária e cuidados de saúde sob quaisquer circunstâncias. É uma atitude voltada para o outro. Nobre por essência e inspiradora, tanto para jovens médicos quanto para roteiristas ávidos por histórias. Achamos importante ressaltar essas premissas nos personagens principais. As ideias surgiam naturalmente nas reuniões de roteiro.
Além de uma boa história, priorizávamos também temas relevantes da saúde: doação de órgãos, violência contra a mulher, aids e obesidade foram alguns deles. Nunca atuei nos Médicos Sem Fronteiras, mas participei de inúmeras missões pela Aeronáutica que prestavam assistência médica nos bolsões de miséria de um Brasil profundo que eu desconhecia. Foram experiências marcantes na minha formação.
Além de ser o autor do livro, você é o consultor técnico de Sob Pressão. Como funciona esse trabalho?
Meu envolvimento com o projeto foi de peito aberto, assim como no livro. Não saberia explicar as atribuições formais de um consultor técnico, mas tanto o Andrucha [Waddington, diretor] quanto o Jorge Furtado e o Lucas Paraizo [roteiristas] foram muito generosos ao permitir que eu participasse ativamente do projeto, desde a criação, passando pelas etapas de pesquisa, roteiro, laboratório com o elenco, pré-produção, maquiagem, filmagem e finalização.
Acho que contribuí mais ao compartilhar minhas vivências, o meu inconformismo com as condições desumanas de atendimento e a minha fala emocionada em defesa do SUS. Procurei relatar a emoção ao ser obrigado a realizar um procedimento cirúrgico na bancada de uma pia ou ao perder um paciente, sabendo que a morte era evitável.
Das muitas produções do gênero, como Dr. House, Grey’s Anatomy e Plantão Médico, qual a sua favorita? Consegue se identificar com alguma ou eram todas distantes de nossa realidade?
Nunca tive por hábito assistir a séries televisivas, nem as médicas. A única que assisti foi ER [Plantão Médico, no Brasil], uma das pioneiras. Gostei, mas sempre achei muito distante da nossa realidade. Essas séries não mostram o sofrimento pela falta de recursos tampouco a superlotação crônica que caracterizam as nossas emergências.
Nelas, a decisão do médico tomada à beira do leito previa vários exames e todos estavam disponíveis. Hoje, no município do Rio, segundo o site do SISREG, um paciente de alto risco pode aguardar 20 dias para a realização de uma tomografia de tórax. Outros, com baixo risco, chegam a esperar 147 dias. Ironicamente, do ponto de vista dramatúrgico, somos mais ricos.
Você se formou em 1994. Que balanço sobre a saúde faz nesses 25 anos?
A medicina avançou muito e rapidamente nos últimos 25 anos. Comecei minha formação aprendendo a fazer grandes incisões no tórax para ressecção de pulmões destruídos pela tuberculose. Hoje, por conta da evolução de alguns dispositivos que facilitaram a cirurgia, realizamos incisões mínimas, menos agressivas, que proporcionam uma recuperação pós-operatória mais rápida. A cirurgia robótica passou a ser uma realidade. Além disso, inteligência artificial, internet das coisas e telemedicina são termos comuns que passaram a fazer parte da prática médica.
Por outro lado, a tuberculose, doença do século 19, insiste em se manter como um grave problema de saúde pública atribuído principalmente à pobreza, à falta de educação em saúde e à inconsistência dos programas de atenção básica em alguns municípios. Pelos mesmos motivos, outras doenças recrudesceram e não sofreram impacto, a despeito das inovações tecnológicas. O SUS, no entanto, persevera e, apesar de todas as dificuldades, avança. Meu sonho tem a ver com isso. Desejo que mais vozes exijam do estado brasileiro a conquista do direito à saúde universal.
Qual teria sido o momento mais trágico e o mais recompensador em sua trajetória?
O momento mais tenso foi quando, sob pressão de traficantes, tive que simular o atendimento ao familiar de um deles que já estava sem vida, por conta de uma forte descarga elétrica sofrida devido a uma obra irregular. Houve uma reação de revolta na comunidade e minha única saída foi colocar o corpo dentro da ambulância e sair em disparada. Em relação aos momentos recompensadores, cito a celebração da alta hospitalar como um deles. O abraço agradecido do paciente ao receber alta é sempre motivo de emoção.
Ao longo da carreira, você deu plantão em alguns dos principais unidades públicas cariocas, como Souza Aguiar, Saracuruna e Adão Pereira Nunes. Diria que, de 2014 para cá, a situação melhorou, estagnou ou piorou?
Eu diria que essa análise requer uma visão mais ampla do que considerar apenas os últimos quatro anos. Mesmo porque o sistema público de saúde não se limita aos serviços prestados exclusivamente em hospitais. Unidades básicas de atenção à saúde, ambulatórios, centros de pesquisa e laboratórios compõem a rede integrada do SUS. Os problemas tendem a se agravar se não houver planejamento em relação ao impacto do envelhecimento da população brasileira e o aumento da carga de doenças crônicas sobre esse sistema combalido.
Segundo o IBGE, daqui a 40 anos, um quarto da população brasileira será de idosos. O cenário preocupa. Em 2018, assistimos aos 30 anos da criação do SUS pela Constituição de 1988, a dita Constituição “cidadã”. Nela, o artigo 196 prevê: a saúde é direito de todos e dever do Estado. Sob esta lei, de lá pra cá, o SUS produziu conquistas significativas. No entanto, o Brasil continua gastando pouco com saúde, menos do que a Argentina e o Uruguai, e com resultados pífios em algumas áreas. Há um subfinanciamento crônico e uma enorme fragmentação de serviços públicos de saúde, com baixa eficácia e enorme desperdício. Organizar e coordenar esses serviços é um desafio gigantesco de gestão, mas, sobretudo, um desafio político.
Segundo levantamento do Cremesp, 60% dos médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem da rede pública de São Paulo já sofreram violência física, verbal ou psicológica no ambiente de trabalho. Já aconteceu algo parecido com você?
Comigo não foi diferente. Também sofri agressões verbais e psicológicas provenientes, inclusive, de outros colegas. Infelizmente, é comum acontecer isso, quando, invariavelmente, a única face que aparece nas emergências da ineficiência do Estado é a do profissional de saúde. Somam-se a isso as condições de estresse nas quais todos estão submetidos, principalmente pacientes e familiares. Para se trabalhar nessas condições, é preciso conciliar certa frieza com empatia. Toda experiência deste tipo é um trauma e deixa marcas nos profissionais.
Apesar do sucesso de público e de crítica, a Globo já anunciou que a nova temporada de Sob Pressão será também a última. O que achou da decisão?
A série tem fôlego e público para outras temporadas. É um tema inesgotável, face ao drama da saúde pública. Embora seja uma ficção, os problemas abordados são reais e muito próximos do público. Fiquei muito orgulhoso com o trabalho realizado até aqui e respeito a decisão da emissora.
Você e o personagem Evandro têm algo em comum? Podemos dizer que ele é autobiográfico?
É um personagem livremente inspirado. As histórias médicas são ora casos reais, vividos por mim e por outros colegas, ora casos fictícios. Mas doutor Evandro é um personagem, insisto nisso. Ambos os personagens centrais são muito ricos. Tanto doutor Evandro quanto a doutora Carolina têm características comuns. A entrega ao paciente e à profissão é uma delas. São comprometidos com a profissão e médicos na sua essência.
No entanto, doutor Evandro extrapola vários limites. Torna-se imprudente, bem diferente de mim. Por isso, me identifico mais com a postura da doutora Carolina. Ela procura exercer a empatia e se aproxima dos pacientes de forma mais suave, doce e humana. Ele é mais imprudente e, portanto, perigoso para os pacientes. Exercer a humanidade através da profissão é o que procuro fazer todos os dias. Talvez seja essa a característica que mais me aproxime dos personagens centrais do Sob Pressão.