Faz sentido pensar em um passaporte de imunidade para Covid-19?
Especialistas da Sociedade Brasileira de Infectologia debatem o que se sabe até o momento sobre a imunidade ao coronavírus
Diante de uma doença nova, causada por um vírus novo, e que, em apenas cinco meses (do final de 2019 a maio de 2020), fez mais de 5 milhões de vítimas infectadas e 360 mil mortes pelo mundo, levantou-se a possibilidade de se criar um passaporte de imunidade. Ele seria atribuído a pessoas que ficaram doentes pela Covid-19 e se recuperaram.
Supostamente protegidas contra reinfecções, a elas seria permitido retornar ao trabalho ou viajar livremente. A proposta foi sugerida por alguns governos, como Chile, Alemanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos. Mas fica a pergunta: é possível emitir um documento com tal afirmação?
Já sabemos que anticorpos são produzidos por indivíduos infectados pelo vírus Sars-CoV-2. Existem indícios de que eles são protetores, mas mais estudos precisam ser concluídos para afirmar se todas as pessoas infectadas terão uma resposta imune eficaz e duradoura.
A reinfecção, até o momento, tem se mostrado rara. Os poucos pacientes que parecem ter apresentado uma segunda infecção pelo coronavírus são aqueles que passaram por um primeiro caso leve, que não levou à produção de anticorpos efetivos pelo sistema imunológico. Mesmo assim, tiveram uma reinfecção (ou exacerbação da primeira infecção) de forma leve a moderada.
Precisamos ter outra questão em mente: hoje, os exames laboratoriais para detectar anticorpos contra o coronavírus, incluindo os testes rápidos, precisam de validação adicional para estabelecer a confiança em seus resultados. A sensibilidade (capacidade de o exame identificar corretamente os indivíduos com a doença pesquisada) e a especificidade (capacidade de indicar casos realmente sem a doença entre sujeitos sadios) de muitos desses testes sorológicos ainda são incertas.
O tempo para a detecção dos anticorpos também varia: em alguns testes rápidos, a identificação acontece a partir do sétimo dia de sintomas, mas, em outros, somente a partir do décimo dia.
Além disso, um exame negativo não exclui a possibilidade de infecção (o que chamamos de falso negativo), enquanto um resultado positivo também não pode ser usado como confirmação de uma infecção (o falso positivo). Outra incerteza diz respeito à taxa de reatividade cruzada com outros coronavírus, como os que causam resfriado comum e circulam amplamente — o exame pode confundir a reação a outro vírus com a do Sars-CoV-2.
Dúvidas sobre a imunidade também nos remetem à busca pela vacina. Há mais de uma centena de pesquisas com imunizantes contra o novo coronavírus em andamento pelo planeta. Os primeiros resultados de algumas vacinas são animadores, o que nos permite ter a esperança de um produto efetivo em um ano ou menos. Vai um tempo, claro, até validar os achados, fabricar e distribuir a vacina a toda a população. Tampouco sabemos se a proteção oferecida durará a vida inteira, como no sarampo, ou se ela deverá ser tomada de ano em ano, como na gripe.
Concluindo, embora a reinfecção pareça incomum, ainda carecemos de estudos para dizer que pessoas que se curaram da Covid-19 têm anticorpos capazes de protegê-las definitivamente de uma nova infecção. Em paralelo, não só os testes rápidos precisam evoluir como esperamos pela vacina.
Assim, dispor de um passaporte de imunidade por ora parece um sonho distante. É fundamental continuar tomando as precauções, cuidando da própria saúde e protegendo a saúde dos outros.
* Dr. Clóvis Arns da Cunha é presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e Dr. Leonardo Weismann é médico consultor da SBI