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Farmacêuticas contra a concorrência

Especialista argumenta que práticas comuns no mercado de medicamentos fazem os preços subirem além da conta, tornando certos tratamentos pouco acessíveis

Por Lúcia Helena Salgado, professora de economia da UERJ*
Atualizado em 26 Maio 2021, 18h52 - Publicado em 26 Maio 2021, 12h02

Quanto você estaria disposto a pagar por um tratamento que salvasse a sua vida? A pergunta é retórica e serve apenas para estabelecer um ponto de partida comum: se o assunto é preço, um medicamento não pode ser visto como um produto qualquer.

Grande parte da teoria econômica entende o preço como resultado objetivo da equação entre oferta e demanda. Nessa leitura, nenhum agente econômico estabeleceria valores abusivos para os seus produtos, porque isso seria insustentável do ponto de vista do mercado. Mas o que acontece quando a demanda é inelástica e o preço é usado de maneira arbitrária para explorar uma situação de dependência, como acontece no caso da saúde?

É isso o que se observa com frequência cada vez maior no mercado global de medicamentos. Protegidas pela falta de transparência sobre custos de desenvolvimento e produção, grandes farmacêuticas têm lançado mão de estratégias para ampliar o seu monopólio e explorar suas patentes de maneira predatória. O resultado: preços de remédios se tornam verdadeiras barreiras de acesso a consumidores e governos.

Autoridades de defesa da concorrência e órgãos do sistema de Justiça em todo o mundo estão atentos e conseguiram assentar importantes precedentes contra esse tipo de prática em países como Estados Unidos, Reino Unido, Itália e África do Sul. A revisão desses casos revela um cardápio diverso de manobras. Há, por exemplo, o sham litigation (ou litigância simulada, no jargão em inglês), que consiste na apresentação de ações judiciais repetitivas e infundadas com o único objetivo de prejudicar algum concorrente. Ou o pay-for-delay, que é o pagamento para que outros atores econômicos atrasem sua entrada no mercado.

Uma modalidade sofisticada de prática anticompetitiva é a denominada buy-and-raise. Ela consiste em adquirir startups que desenvolveram soluções inovadoras para tratamento de doenças graves quando tais inovações encontram-se em estágio final de aprovação e patenteamento. Em outras palavras, trata-se de adquirir uma tecnologia em fase de pré-lançamento com recuperação rápida de investimento a risco virtualmente nulo. Muitas vezes, o medicamento está até disponível no mercado e, sob novo controle, é repaginado e relançado com preços elevados, em percentuais de até quatro dígitos.

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Foi assim no caso do laboratório Artavis, no Reino Unido, que aumentou o preço dos comprimidos de hidrocortisona em até 12 000%. Você leu corretamente: 12 000%. A empresa foi processada pela autoridade de concorrência britânica, assim como a Pfizer, que subiu o preço de um medicamento para tratamento da epilepsia em 2 600%.

Aqui no Brasil, está sob análise do Cade (Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência) o caso do sofosbuvir, que inovou o tratamento da hepatite C. Adquirido pelo laboratório Gilead quando se encontrava em estágio final de testes clínicos, o remédio foi desenvolvido por uma startup de Princeton, a Pharmasset, através da parceria com uma universidade e contando com importante financiamento público.

Quando lançado, em 2013, foi registrado com o inacreditável preço de 84 mil dólares. Uma comissão de investigação do senado americano denunciou, em 2015, que não encontrou qualquer relação entre os investimentos em pesquisa e o preço de lançamento do sofosbuvir.

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Esse tipo de distorção foi encontrado aqui também. Um estudo de 2019 do Grupo Direito e Pobreza da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo demonstrou que, no Brasil, a Gilead encontrou caminho aberto para abusar de sua dominância na comercialização do sofosbuvir. De acordo com a pesquisa, o preço médio do sofosbuvir aumentou até 1 421% após a concessão da patente e o fim da concorrência com o laboratório de Farmanguinhos, que produzia um medicamento genérico. Em municípios com menor poder de barganha, a farmacêutica chegou a cobrar valores 21 322% maiores em relação ao preço cobrado no período em que havia concorrência.

Esse movimento da empresa teve um efeito devastador para os pacientes do sistema público. Por causa dos altos custos, o tratamento passou a ser oferecido apenas àqueles em estágios graves da doença.

Avanços em tecnologias da saúde são resultado de esforços intergeracionais de múltiplas forças da sociedade, com destaque para laboratórios universitários e agências públicas de fomento à inovação. Assim como, claro, por componentes da indústria farmacêutica. O argumento das empresas de que a inovação é cara e arriscada, o que justificaria a cobrança de preços estratosféricos, precisa ser enfrentado a partir dessa perspectiva e da concomitante cobrança de transparência sobre custos.

No Brasil, o Cade tem a oportunidade histórica de promover esse debate a partir do caso do sofosbuvir e de colocar limites para o uso de preços abusivos como instrumentos de exploração da demanda por saúde. O momento nunca foi tão propício.

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*Lúcia Helena Salgado é professora associada da Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

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