Espiritualidade em tempos de coronavírus
Médico tece uma reflexão sobre o papel da espiritualidade no enfrentamento da crise da Covid-19 — e no mundo pós-pandemia
Tempos de crise são tempos de sofrimento e dor, mas também de transformação e conversão. Em um pensamento para além do debate atual sobre as necessárias medidas de combate à Covid-19 (doença causada pelo novo coronavírus), gostaria de compartilhar minhas reflexões sobre duas consequências da pandemia que podem ser oportunidades para nosso crescimento.
Primeiramente, ela nos lembra nossa fragilidade. O rastro de morte, de medo e de paralisação social que esse pequeno ser acelular nos impõe é um duro golpe contra a ditadura do narcisismo humano. Diante de uma ameaça invisível e traiçoeira, que pode levar de nossa presença tantos entes queridos, fica na boca o amargo sabor da impotência. Percebemo-nos como verdadeiramente somos: finitos e pequenos.
Nessa perspectiva, abrem-se caminhos de espiritualidade que devem nos conduzir para fora de nós, para a transcendência e o encontro com Deus. Desse encontro brota a esperança que nos conduz para além da materialidade e nos dirige rumo ao infinito. Ao abraçar o divino, o homem tem a oportunidade de alimentar-se de uma vida que não cessa, que pulsa e encoraja. Mas onde podemos encontrar essa fonte do Bem supremo, quando tudo escurece e esfria ao nosso redor?
É justamente na caridade para com aquele que sofre que podemos ter esse encontro, pois na prática do amor desvela-se a verdadeira essência do sagrado. Como não ver nos exemplos de Irmã Dulce e de madre Tereza de Calcutá o brilho da santidade que emana do cuidado ao necessitado, ao doente, àquele que ninguém quer. São muitos os que hoje fazem isso nos hospitais assolados pelo coronavírus no mundo todo.
O confronto com o sofrimento nos convida, também, a um itinerário interior em busca de iluminação, através de oração e meditação, formas de diálogo com o Divino. Buda começou seu caminho espiritual a partir do contato com a fragilidade humana após abandonar o fausto palácio em que fora criado. Trata-se de um convite universal.
Em segundo lugar, para além de nossa fragilidade, a pandemia que vivemos nos recorda nossa dependência. Somos seres mutuamente dependentes. Ninguém pode cuidar-se sozinho em uma UTI, sempre se depende de outros, de muitos, de todos. Somos seres criados para a solidariedade, para a conexão e para o afeto. Aproveitemos esses tempos para uma experiência de conectividade mais profunda com aquilo e com aqueles que realmente importam.
Alguns dizem que o mundo não será o mesmo depois da Covid-19, espero que estejam certos. Espero que a saudade dos abraços nos torne mais afetuosos, que a saudade dos templos fortaleça nossa fé, que a saudade de nossos avós nos faça amá-los e visitá-los mais e que a visão de nossa pequenez nos permita olhar mais para o alto.
* Dr. Felipe Moraes é oncologista clínico, teólogo e atuante no Hospital São Camilo (Pompeia), na capital paulista