Alzheimer: calçando os sapatos de quem tem a doença
Nossa colunista reflete sobre os desafios da convivência com o problema e os caminhos para manter a qualidade de vida dos pacientes
Pense em uma pessoa que você ama. Agora, tente se lembrar de um momento importante, daqueles que você jamais vai esquecer, como o dia em que se viram pela primeira vez. E se você soubesse que essa pessoa começará, em breve, a se esquecer das lembranças que vocês criaram juntos. Que gradativamente sua memória começará a falhar e ela poderá sequer lhe reconhecer quando estiver junto dela. Pior: que essa pessoa fosse capaz de lhe agredir física ou verbalmente. Como você se sentiria nessas circunstâncias? Como agiria para que ela pudesse continuar a se sentir amada?
No exato momento em que você lê este texto, algum cidadão no mundo está dando entrada no processo de perda de memória ocasionado pelo Alzheimer. Falamos do tipo de demência mais comum no planeta: são estimados mais de 9,9 milhões de novos casos por ano, o que equivale a uma pessoa diagnosticada a cada 3,2 segundos.
Hoje, há 50 milhões de pessoas com a demência, e a expectativa é que esse número alcance os 152 milhões em 2050. A maioria dos indicadores concentra-se na população de idosos. Isso pode ser justificado pelo fato de, geralmente, o diagnóstico ser tardio, visto que estudos apontam que o declínio da capacidade cerebral pode começar até 20 anos antes dos primeiros indícios se manifestarem. Não à toa, trata-se de uma doença com maior prevalência entre pessoas com 65 anos ou mais.
Estamos no sétimo ano consecutivo desde a criação do Dia Mundial do Alzheimer, cuja data é celebrada no 21 de setembro. Por isso, quero conversar com você não sobre o diagnóstico ou o tratamento – ou mesmo sobre o fato de ainda desconhecermos a cura. Prefiro usar esta oportunidade para refletir sobre como lidar com a pessoa que sofre com a demência. Será que ela ainda é a mesma que você ama? O que ela sente e como percebe o universo ao redor?
Primeiramente, devo esclarecer que seu pai, sua mãe, seus avós, seu marido, esposa, companheiro, amigo, irmão – quem quer que seja – não se resume ao Alzheimer. Não somos nosso diagnóstico. Sei que pode parecer que, na medida em que a doença avança, tudo o que resta é uma espécie de vazio. Saiba, porém, que aquela pessoa que você conheceu ainda está ali. Talvez não da forma como você se recorda. Ainda assim, merece receber amor e respeito, ser acolhida e confortada.
Sabe aquele ditado que nos convida a calçar os sapatos do outro para então compreender a história daquela pessoa? Quero convidar você a colocar, por alguns instantes, o “sapato do Alzheimer”.
Como você se sentiria se de repente acordasse e olhasse ao redor sem reconhecer muito do que vê? Assustado, você diria que “quer ir para casa”. Daí, lhe dizem que você já está em casa. Como pode ser? Essa pergunta gera sensações como medo, confusão, tristeza, preocupação e ansiedade. Podemos traduzir essa avalanche emocional como insegurança. Afinal, quando não sabemos onde estamos, tudo à nossa volta pode se tornar hostil. E, nada melhor para vencer a hostilidade que o acolhimento! O que quero dizer com isso?
Devemos interpretar os sentimentos e as atitudes das pessoas com Alzheimer, nunca nos esquecendo que estão doentes e que inclusive as mudanças na personalidade fazem parte do quadro clínico. Não é uma missão fácil porque inúmeras vezes imaginamos que o indivíduo está desferindo uma ofensa pessoal. Devemos, contudo, ter serenidade e meditar sobre a situação.
Outra cena usual entre cidadãos com demência é ter de repetir a eles a mesma informação diversas vezes. Lembre-se: o Alzheimer é capaz de corroer as áreas do cérebro que regem a memória mais recente. Por isso, jamais responda um “mas eu acabei de falar isso”. Procure compreender, ouvir de novo e, se necessário, responder à questão de outra forma, até mesmo concordando com os erros para evitar eventuais conflitos.
Tantas alterações comportamentais, repetidas rotineiramente, podem afligir e cansar quem cuida das pessoas com Alzheimer. É o chamado estresse do cuidador. Uma situação que precisa ser identificada e tratada para que não haja piora na relação e nos cuidados com o paciente (independentemente se o cuidador é parte da família ou não).
Aliás, há determinadas perguntas que devemos evitar fazer quando estamos com alguém que tem Alzheimer. Duas delas que merecem atenção são: “você se lembra de…?” ou “você sabe quem sou eu?”. De fato, embora seja tentador estimular a memória, esses questionamentos podem desencadear frustração ou causar tristeza caso o indivíduo já não tenha mais lembrança de determinado fato, pessoa etc.
Além disso, não há evidências de que “treinar o cérebro” dessa maneira ajudará alguém a manter a memória em condições adversas. Procure abordar o passado apenas quando o idoso fizer menção a ele, deixando que ele lidere o ritmo da conversa. Em lugar de “você se lembra”, use “eu me lembro quando…”
Se seu ente querido não lhe reconhece, você pode se sentir triste ou frustrado. Lembre-se de que o sentimento é mútuo. Quando perceber que ele não se lembra, procure cumprimentar e interagir de maneira a criar um “novo” vínculo entre vocês.
Pesquisas indicam que, mesmo na ausência da memória, os sentimentos dos idosos com Alzheimer persistem. Por isso, criar uma atmosfera que gere alegria e segurança contribui inclusive com o tratamento e a melhora da qualidade de vida. O amor, o acolhimento, o conforto, a compaixão e a empatia são ferramentas que podem ser mais poderosas do que qualquer medicação ou tecnologia.
Invista seus esforços na manutenção da relação humana e procure trazer à memória quem aquela pessoa que está diante de você representa. Quando nos recordamos daqueles que porventura nos esqueceram, nos permitimos resgatar a essência do vínculo e, assim, temos forças para ressignificar essa relação, dia após dia.