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A verdade sobre o bife de papelão – e outros mitos sobre carne

Papelão só serviria para apodrecer a carne mais rápido, ácido ascórbico não ressuscita bife e não vai osso moído na salsicha

Por Bruno Vaiano, com Guilherme Eler e Tiago Jokura (da Superinteressante)
Atualizado em 23 mar 2017, 19h39 - Publicado em 23 mar 2017, 18h17
carne
O escândalo da carne brasileira veio com alguns exageros.  (Foto: Alex Silva/A2 Estúdio)
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A última sexta-feira (17) virou as geladeiras de todo o país de ponta-cabeça. A operação Carne Fraca, a maior da história da Polícia Federal, levou aos jornais, ao debate público e às redes sociais os métodos e ingredientes usados por mais de 40 empresas do setor alimentício para, com o perdão do trocadilho, encher linguiça.

Acontece que superpoderes foram atribuídos a substâncias não tão mágicas assim, como o ácido ascórbico, que seria capaz de devolver a boa aparência a qualquer peça de presunto de idade avançada. Já a misteriosa carne mecanicamente separada – mistura de aparas que atende pela sigla CMS e preenche calabresas ao redor do mundo – passou a levar, segundo teóricos da conspiração, ossos moídos junto com o resto da carcaça.

A SUPER falou com Regina Mendonça, especialista em produtos de origem animal da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. Ela é mestre e doutora na produção de carnes curadas, como presunto e salame, e concorda com a avaliação de vários especialistas: a revolta com o envolvimento da classe política e do setor público com empresas privadas não pode abrir portas para a generalização das acusações e a circulação de informações falsas. A começar pela do papelão na carne.

Papelão

“A carne é muito perecível, misturada com o papelão, não iria durar no mercado”, diz a pesquisadora. “Por uma eventualidade um pedaço pode ir parar na área de processamento, mas isso não é rotineiro, pois o papelão é embalagem secundária [caixa]. Seja como for, ele não entra como matéria-prima”.

Além do simples fato de que o contato com o papelão diminuiria a vida útil do produto, gastar dinheiro com celulose não é negócio quando há outro recheio, natural e extremamente barato, já que é fornecido pelas carcaças dos animais: a agora lendária CMS. Vamos a ela.

Carne mecanicamente separada (CMS)

Carne mecanicamente separada é uma mistura que leva tudo que não dá para tirar dos ossos do frango, boi ou porco abatido usando o método e as máquinas tradicionais. Nela vão partes menos nobres, como o dorso e o pescoço. Não é uma iguaria – mas mantém algum valor nutricional.

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A presença de aparas, gordura, pele e às vezes algum traço de cartilagem sem dúvida altera a composição e algumas características nutricionais da carne, e imaginar a produção de um embutido pode não agradar seu apetite. “É um equipamento específico que tira a carne que sobra nos ossos”, conta Mendonça. “Mas mistura não inclui os ossos em si, ela também tem que ter alguma qualidade microbiológica. Caso contrário ela pode ser fonte de contaminação e estragar o lote, há uma margem de segurança.” Aqui, novamente, o risco de sofrer prejuízo se os padrões de qualidade não forem alcançados é, em última instância, garantia de qualidade. Mas também há normas oficiais que põe ordem na casa.

Esta instrução normativa da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo – publicada em 5 de abril de 2000 e mantida idêntica desde então – afirma que uma mortadela do tipo mais básico pode conter até 60% de CMS e 10% de pele e tendões. Mortadelas de qualidade mais razoável levam só 20% de CMS, e as mais caras não têm o produto. Cabeça, patas e pés não podem ir disfarçados na mistura em hipótese alguma.

Linguiças como paio e calabresa levam no máximo 20% de CMS de boi e porco, e a toscana, só porco. As salsichas, por sua vez, podem levar miúdos comestíveis, mas as versões gourmet Viena e Frankfurt estão isentas da “iguaria”. Curiosos também podem dar uma olhada na regulação das almôndegas, assunto da instrução normativa nº 20, de 31 de julho de 2000 (que é federal).

A lei também prevê quantidades mínimas de cada nutriente. No caso da linguiça, o teor de cálcio varia entre 0,1% e 0,3% — o número seria bem maior se ossos estivessem na jogada. O máximo de gordura fica entre 30% e 35%. Também é bom lembrar que CMS não é novidade e nem exclusividade nacional: é usada em todo o mundo desde a Segunda Guerra Mundial.

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Outra boa ressalva é que embora a cabeça de porco, por lei, não possa entrar na mistura da carne mecanicamente separada, sua venda é permitida se a separação for manual e partes como o cérebro e as glândulas forem descartadas. As informações são da Associação Brasileira de Proteína Animal, a ABPA. Carmen Castillo, pesquisadora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) da USP, concorda com as demais fontes e reforça que a análise química da CMS é criteriosa — ossos não passariam pelas inspeções químicas.

Ácido ascórbico

A vitamina C (ácido ascórbico) é um antioxidante, e a principal deterioração que ocorre na carne é a oxidação”, explica Mendonça. “Mas a gordura continua oxidando. Você pode virar um pote de vitamina C na carne que não vai adiantar, e a substância é cara demais para usar em grandes quantidades. Seria um tiro no pé.”

O ácido é sim parte do processo produtivo, mas serve de conservante, e não fará um bife voltar a seu frescor original – ou seja: se você ver uma prateleira cheia de embalagens de carne com aparência saudável, seguramente não será alimento podre maquiado, já que não há maquiagem tão potente. Em produtos como o salame, o ácido ascórbico pode, como muitas outras substâncias, ser usado para acelerar o processo de cura – a maturação de uma peça de carne envolta em sal, se feita à maneira tradicional de países do Mediterrâneo desde o Império Romano, leva vários meses, prazo inviável para a indústria.

Outras substâncias químicas, como o ácido sórbico e o sorbato de potássio, são aplicados para evitar a formação de fungos no exterior da peça. Nitritos e nitratos, além das propriedades antioxidantes, podem funcionar como fixadores de cor, ou impedir o surgimento de doenças como botulismo — o que mantém padrões sanitários mínimos para a comercialização. “Mas mesmo a técnica mais complexa não é capaz de salvar a matéria-prima. Se não há matéria-prima de boa qualidade, os produtos químicos não vão fazer milagre”, diz Castillo, da ESALQ.

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Este conteúdo foi publicado originalmente no site da Superinteressante.

 

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