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O manual de prevenção do Alzheimer

Adotar certos hábitos reduz em 40% o risco de demências. Veja como colocar em prática — e durante toda a vida — as medidas capazes de blindar seu cérebro

Por André Biernath
Atualizado em 17 jun 2021, 18h47 - Publicado em 16 out 2020, 14h42
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  • Ambientada no México, a animação Viva — A Vida É uma Festa!, lançada em 2017 pela Disney/Pixar, é uma celebração das tradições que carregamos geração após geração. Na aventura, o jovem Miguel precisa viajar até o mundo dos mortos para desfazer antigos mal-entendidos de sua família. Em meio a tantas aventuras, o herói descobre como as lembranças que temos são capazes de alterar o passado, o presente e o futuro. Uma das personagens mais carismáticas da história é Mamá Coco, a bisavó do garoto, que apresenta um quadro avançado de demência. Numa das cenas mais marcantes do filme, a senhora de 90 e poucos anos consegue se lembrar da música-tema, Recuérdame, e cantá-la, deixando os espectadores com lágrimas nos olhos — inclusive este que vos escreve.

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    Mas o que faz essa obra cinematográfica ser tão especial? Acredito, e muitos neurocientistas vão concordar, que é o fato de colocar a memória no centro de tudo. Esse é um bem tão precioso que a ameaça de perdê-lo, nem que seja a conta-gotas, é um pesadelo que ninguém quer vivenciar. Mas é esse drama que infelizmente se torna cada vez mais comum com o envelhecimento da população. Doenças como Alzheimer promovem um verdadeiro apagão no cérebro, corroendo as recordações. Hoje, mais de 50 milhões de pessoas acima dos 60 anos apresentam demência no mundo — são 1,4 milhão no Brasil —, e estima-se que o número vá triplicar até 2050. Para deixar a trama ainda mais tensa, as opções de tratamento disponíveis hoje são escassas e só funcionam nas fases leves e moderadas.

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    Nesse panorama desafiador, especialistas acreditam que o mais sensato é apostar todas as fichas em estratégias de prevenção. Sim, embora existam propensões individuais mediadas pelos genes, o estilo de vida pode fazer diferença nas perspectivas de ter ou não uma doença como o Alzheimer lá na frente. E ainda bem que há uma bússola para nos guiar nesse sentido. Um relatório recém-publicado pela Comissão contra a Demência do The Lancet, uma das revistas médicas mais conceituadas do globo, destrinchou os 12 fatores preponderantes para o desenvolvimento do problema. O documento identifica causas e atitudes que, quando combinadas, conferem proteção ao nosso cérebro. “Nós acreditamos que a prevenção é sempre o caminho. Ela chega a ser inclusive melhor que a cura, mesmo se tivéssemos medicamentos disponíveis, efetivos e baratos”, diz a VEJA SAÚDE a psiquiatra Gill Livingston, professora da University College London, na Inglaterra, e principal autora do documento.

    A nova diretriz é uma atualização de outro trabalho feito por esse mesmo grupo internacional em 2017. Na versão anterior, os especialistas haviam compilado um total de nove promotores da demência: perda auditiva, baixa escolaridade, tabagismo, depressão, isolamento social, hipertensão, sedentarismo, diabetes e obesidade. Agora, foram incluídos três novos integrantes à turma de vilões: consumo excessivo de álcool, poluição atmosférica e pancadas na cabeça (também conhecida entre profissionais como traumatismo cranioencefálico). Nesses três anos, novas investigações demonstraram a relação entre essa trinca de elementos e diversos ataques aos neurônios. “O conhecimento em nossa área tem crescido de maneira exponencial, tanto na quantidade como na qualidade das pesquisas”, contextualiza o neurologista Paulo Caramelli, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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    A lista de fatores pode ser dividida em dois grandes grupos, de acordo com seus efeitos maléficos à massa cinzenta. O primeiro deles, que inclui obesidade, diabetes, hipertensão, entre outros, está relacionado a danos constantes aos vasos sanguíneos, o que prejudica a chegada de oxigênio e nutrientes às células nervosas. “Existe aqui um componente inflamatório alterado que afeta a resposta do cérebro e cria um círculo vicioso, levando a uma piora progressiva da sua função”, explica o neurocientista Marcos Romualdo Costa, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    O segundo grupo reúne itens como baixa escolaridade, depressão e perda auditiva: eles estão relacionados a quanto estimulamos e desafiamos o raciocínio no dia a dia. Os cientistas costumam usar o termo “reserva cognitiva” para explicar esse conceito: cada vez que aprendemos uma coisa, criamos novas conexões entre os neurônios. Quando a busca pelo conhecimento é contínua, essas células criam conexões fortes e difíceis de serem derrubadas. Imagine só o que acontece no cérebro de um indivíduo que foi à escola por muitos anos. Mesmo que ele desenvolva uma demência e sofra com a morte dos neurônios, essa solidez toda é capaz de postergar os sintomas por anos ou até décadas. “Na contramão, se eu paro de exercitar o cérebro, a tendência é que esse repertório se deteriore”, aponta o neurocientista Rogerio Panizzutti, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A boa notícia é que nunca está cedo ou tarde demais para prevenir esses perrengues: há atitudes e hábitos bem-vindos que podem ser colocados em prática da infância à maturidade. Chegou a hora de conhecê-los. 

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    Medidas em prol da cabeça

    Ao cuidar destes 12 fatores, que você confere ao longo da reportagem, é possível proteger sua memória e atrasar o surgimento de demências como Alzheimer

    Perda auditiva – 8,2%

    Educação – 7,1%

    Tabagismo – 5,2%

    Depressão – 3,9%

    O relatório da comissão do The Lancet, apresentado durante a última Conferência Internacional da Associação de Alzheimer, foi muito bem recebido pelos especialistas. Mas algumas ausências foram sentidas e criticadas. Uma delas foi o impacto da alimentação no desenvolvimento das enfermidades cerebrais. Ao longo das últimas décadas, diversos estudos demonstraram que a dieta mediterrânea, baseada em vegetais, pescados e outras carnes magras, protege o cérebro. Um grupo de estudiosos chegou a propor a criação da dieta Mind, rica em oleaginosas, frutas vermelhas e verduras verde-escuras, desenhada justamente para resguardar a cuca. “Sabemos também da importância de restringir o consumo de carne vermelha e alimentos processados nesse contexto”, lembra a neurologista Sonia Brucki, do Hospital das Clínicas de São Paulo.

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    Os autores contra-argumentam dizendo que nenhum micronutriente específico (vitamina C, selênio, cálcio, zinco, ômega-3…) carrega evidências definitivas de ação protetora para a cognição. “Além disso, as dietas parecem ter um efeito primário sobre o sistema cardiovascular, que depois repercutiria no risco de demência”, reflete Gill Livingston. Portanto, o fato de os alimentos não serem personagens principais do documento não significa que podemos nos descuidar daquilo que botamos no prato — muito pelo contrário! Em seu manual de prevenção da demência, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que uma dieta variada, equilibrada e cheia de alimentos frescos e naturais é parte importante dos esforços individuais e das políticas públicas de saúde. “Precisamos buscar o equilíbrio à mesa e evitar os produtos ultraprocessados e aqueles cheios de açúcar, gordura e sal”, recomenda o neurologista Lucas Schilling, do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Afinal, uma dieta mais saudável está ligada a menor risco de diabetes, hipertensão, obesidade… E isso, como você vai perceber, repercute de modo direto e indireto no funcionamento do cérebro.

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    Outro componente que não deu as caras no documento foi o sono. Será que distúrbios como a insônia e a apneia não são maléficos nesse domínio? Por mais que alguns trabalhos já sinalizem que noites maldormidas danificam os neurônios, essa ainda é uma área nebulosa, que carece de estudos robustos e conclusivos. Pode até ser que, numa versão futura da diretriz, tenhamos aqui um 13º fator para a lista. Enquanto isso não ocorre, vale tomar as medidas básicas em prol de um bom descanso noturno (ter horários regulares, fazer atividades relaxantes à noite…). Pode apostar que o corpo, a mente e a memória empregada na rotina vão agradecer. 

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    Isolamento e solidão – 3,5%

    Pancadas na cabeça – 3,4%

    Poluição – 2,3%

    Hipertensão – 1,9%

    Os desafios que a demência acarreta para quem sofre com ela, os familiares e toda a sociedade são imensos. Agora, pense como fica tudo isso em meio a uma crise de saúde pública. A Covid-19 chegou para bagunçar de vez o coreto. No próprio texto publicado pelo The Lancet, os autores chamam a atenção para o risco de toda a situação que estamos vivendo. Calcula-se que, só no Reino Unido, um quarto de todas as mortes causadas pelo coronavírus responsável pela pandemia atual tenha ocorrido em indivíduos com algum abalo na memória. São muitas as razões para esse impacto gigantesco. Além de uma saúde mais frágil, essas pessoas moram em casas de repouso ou dependem de cuidadores — e essa proximidade constante com os outros aumenta o risco de contato com o agente infeccioso.

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    Por mais que não existam registros oficiais a respeito desse tema em nosso país, os profissionais que atuam na linha de frente relatam uma queda geral na qualidade de vida de seus pacientes nos meses de 2020. “Houve um aumento de sintomas como apatia, depressão e confusão mental pela falta de contato social”, descreve o médico Paulo Bertolucci, professor titular de neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para evitar a contaminação e manter esse grupo o mais estável possível, as famílias precisam se organizar e alinhar as orientações com o especialista que acompanha o caso. As autoridades também deveriam tomar algum tipo de atitude para trazer mais proteção e conforto para uma parcela da população tão necessitada de cuidados.

    Falando do poder público, o Brasil está anos-luz atrás de outras nações quando o assunto é a prevenção e a atenção a indivíduos com Alzheimer e outras doenças do tipo. Até países próximos de nós, como o Chile, já possuem um plano nacional contra a demência bem estruturado. Por mais que existam conversas, reuniões e projetos, a coisa parece ter evoluído pouco por aqui — e a pandemia paralisou de vez as discussões que estavam acontecendo. “Um planejamento nesses moldes tem que envolver campanhas de prevenção de obesidade, diabetes e pressão alta, melhorar a escolaridade do nosso povo, passar orientações sobre sintomas preocupantes e montar centros de diagnóstico, tratamento e acolhida”, resume a médica Jerusa Smid, da Academia Brasileira de Neurologia, uma das entidades que levantam essa bandeira. E olha que precisamos correr atrás do prejuízo com urgência: em 2050, as falhas de cognição e memória vão atingir 152 milhões de pessoas. Dois terços desses casos ocorrerão nos países em desenvolvimento, como o Brasil, e vão afetar principalmente a parcela mais pobre da população. 

    Sedentarismo – 1,6%

    Diabetes – 1,1%

    Exagero no consumo de álcool – 0,8%

    Obesidade – 0,7%

    Se as questões relacionadas à prevenção da demência estão bem estabelecidas, o mesmo não pode ser dito sobre o tratamento: por enquanto, as pesquisas com novas medicações até se mostram promissoras nas etapas iniciais dos estudos. Mas, quando os testes avançam para a fase final e definitiva, é frustração em cima de frustração. Nas últimas duas décadas, 99% de todas as tentativas falharam. Uma esperança recente eram as drogas que conseguiam retirar o excesso da proteína beta-amiloide no cérebro. Essa substância aparece aos montes no Alzheimer e seu acúmulo está relacionado à morte dos neurônios. Infelizmente, por mais que os fármacos consigam realizar essa limpeza na massa cinzenta com sucesso, isso não se reverte em um ganho no quadro clínico, com menos perda de memória ou melhor desempenho cognitivo.

    A explicação encontrada para o fracasso está no momento em que essas terapias são administradas: todos os estudos recrutaram pacientes com a enfermidade já avançada. “E sabemos que a condição se inicia dez a 20 anos antes das primeiras manifestações”, informa Ricardo Nitrini, professor titular de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Por que não experimentar essas formulações nos indivíduos que já apresentam a tal da beta-amiloide alterada no sistema nervoso mas não apresentaram sintomas iniciais? É nisso que os laboratórios farmacêuticos apostam. “Os resultados, porém, demorarão a aparecer, pois é preciso esperar alguns anos para ver como esses voluntários evoluem”, pondera o neurologista Fábio Porto, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

    Há ainda outra grande barreira a ser ultrapassada aqui. Hoje em dia, para identificar esse grupo que tem um quadro muito precoce (e silencioso) de demência, é preciso recorrer a métodos de detecção caríssimos e pouco práticos, caso de alguns exames de imagem. Mas essa realidade está prestes a ser mudada: na última Conferência Internacional da Associação de Alzheimer, investigadores suecos compartilharam resultados de um exame capaz de diagnosticar o Alzheimer por meio do sangue. “Houve um avanço extraordinário no conhecimento sobre os biomarcadores, que pode significar uma mudança de paradigma na área”, analisa o neurologista Leonardo Cruz de Souza, professor da Faculdade de Medicina da UFMG. Aos pouquinhos, a ciência vai juntando as partes desse quebra-cabeça complexo. Enquanto as peças finais são encontradas e encaixadas umas nas outras, está em nossas mãos proteger as próprias memórias — para transmitir com orgulho nossas histórias, tradições e conquistas às futuras gerações.   

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