Quem tem medo de avião sente o coração disparar só de passar na frente do aeroporto. Quem tem pânico de lugares fechados chega a suar frio ao se imaginar dentro de um ônibus lotado, um elevador cheio ou uma roupa apertada. Mas e quem tem aversão a tudo que envolve dinheiro?
Não estamos falando do receio de pegar em notas e moedas — situação que pode despertar apreensão pelos germes e se resolve com uma boa higiene —, mas do receio desmedido de se programar financeiramente, pagar contas, investir ou pedir empréstimos.
Em casos extremos, o sujeito chega a ter sintomas semelhantes aos de outras fobias: respiração ofegante, sudorese, sensação de que vai desmaiar… O coração vem à boca quando é preciso abrir a fatura do cartão de crédito, checar o extrato do banco ou montar a planilha com as despesas do mês.
“Se você tem medo de avião, viaja de ônibus. Se tem pavor de elevador, sobe de escada. Mas como é que faz se tem aversão a dinheiro? É difícil evitar o contato com algo tão corriqueiro e do qual dependemos para sobreviver”, reflete Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro do Núcleo de Estudos Comportamentais (NEC) da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e uma das pioneiras da psicologia econômica no Brasil. Pois é, quem sente na alma essas desventuras com o dim-dim pode estar sofrendo de fobia financeira.
O termo foi criado pelo psicólogo britânico Brendan Burchell em 2003. Mas ganhou novo status nestes tempos de estresse econômico, com mais cidadãos inadimplentes, cheios de dívidas e sem fonte de renda devido à pandemia da Covid-19. Professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Burchell é autor do estudo que deu origem à expressão e de outros trabalhos que buscam identificar as características e o impacto dessa fobia na vida das pessoas.
Com o objetivo de traçar o perfil de quem tem repulsa a negociações financeiras, ele e sua equipe realizaram, entre julho e setembro de 2015, uma pesquisa com 1,3 mil voluntários. Descobriram que 20% desse público evitava saber se a conta estava no vermelho, se ia entrar no cheque especial ou se o nome estava sujo na praça, por exemplo. Estendendo o resultado para a população britânica, seriam mais de 13 milhões de fóbicos financeiros. “A procrastinação é uma das principais características dessas pessoas. As tomadas de decisão importantes costumam ser adiadas ao máximo”, descreve Burchell.
O professor aponta outros dois traços marcantes: a falta de confiança (tanto em si quanto nas instituições) e a frustração (muitos admitiram ter desenvolvido a fobia depois de uma experiência desastrosa). Ainda segundo o estudo de Cambridge, 54% das vítimas relatam apreensão e 38% desinteresse quando têm de resolver pendências financeiras.
Ir ao banco para conversar com o gerente e negociar uma dívida ou financiar um imóvel, por exemplo, está fora de cogitação. Tentar a redução no valor do aluguel com o locador do apartamento durante a pandemia também.
Em alguns casos, os efeitos da fobia financeira extrapolam os limites psíquicos ou emocionais e causam estragos físicos. Na apuração de Burchell, 45% dos fóbicos apresentaram taquicardia, 12% cansaço e 11% tonturas.
Do outro lado do Atlântico, a saúde financeira do brasileiro, tal e qual um paciente de UTI, talvez inspire ainda mais cuidados. “Sete em cada dez pessoas têm sintomas de ansiedade e fobia financeira por aqui”, estima o economista Thiago Godoy, mestre pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e chefe da área de educação financeira da Xpeed.
De acordo com o estudo O Bolso do Brasileiro, feito pelo Instituto de Pesquisa Locomotiva com 1,5 mil participantes em outubro de 2020, falar de dinheiro no Brasil virou um tabu tão grande que chega a causar danos psicológicos, como irritação (31% da amostra); sequelas emocionais, como culpa (39%); e estragos físicos, como dificuldade para dormir (21%).
“Além dos sintomas físicos e psicológicos, há também os sinais financeiros propriamente ditos”, alerta a economista Andreia Fernanda, especialista em psicologia econômica e consultora de planejamento financeiro. “O principal deles talvez seja o endividamento recorrente”, aponta.
A cabeça e o bolso pós-Covid
Que a pandemia desestabilizou o mundo inteiro ninguém duvida, mas o brasileiro parece ter sentido o golpe mais do que ninguém. A Covid-19 pesou na cabeça, no corpo e no bolso, como revela um levantamento da Serasa Experian com 3 mil indivíduos de dez países, entre eles Estados Unidos, França, Austrália, Índia e Japão. A pesquisa constatou que os índices de saúde mental, física e financeira registrados no Brasil estão piores do que a média global.
Estresse e ansiedade marcam presença na vida de 56% dos nossos conterrâneos, ante 44% da média internacional. Dificuldades para praticar exercícios e evitar o ganho de peso, por exemplo, foram relatadas por 44% dos brasileiros, sete pontos acima da média dos outros países.
E os perrengues financeiros, como manter as contas em dia e pagar aluguel, registram taxa de 49% por aqui, diante de 37% da média global. Quase seis em cada dez brasileiros ouvidos na pesquisa alegam problemas para pagar os boletos: o que mais dá dor de cabeça é a fatura do cartão, seguida pelas contas de água, luz e gás e pelas despesas médicas.
Negacionismo financeiro
Para o consultor André Massaro, não é difícil reconhecer quem sofre de fobia financeira. Autor de Dinheiro É um Santo Remédio (Editora Gente), ele afirma que a maioria das pessoas nessa condição até sabe ou desconfia que o problema existe, mas não quer ter o menor contato com ele.
“É mais ou menos como o paciente que evita ir ao médico porque tem pavor de ouvir notícia ruim, como se a doença só passasse a existir depois que o médico falasse dela. Por essa razão, ele deixa de fazer exames e consultas que um dia podem salvar sua vida”, compara.
Segundo Massaro, a origem da fobia costuma estar associada a algum evento traumático do passado, sofrido pela pessoa em si, alguém próximo ou da família. Pode ser desemprego, inadimplência, falência… Sabe aquele indivíduo que aplicou tudo o que tinha em um investimento qualquer e não conseguiu o retorno esperado? Então, as chances de um sujeito desses desenvolver fobia financeira tendem a crescer.
Mas há outros motivos por trás, e alguns deles estão mais relacionados à conjuntura econômica, como argumenta Ceneide Maria de Oliveira Cerveny, doutora em psicologia clínica pela PUC-SP. Um exemplo é o Plano Collor. Entre as medidas daquele famigerado pacote econômico, anunciado em 16 de março de 1990, estava o bloqueio das contas-correntes, das cadernetas de poupança e demais aplicações financeiras por 18 meses.
Um empresário de Blumenau (SC), prestes a expandir os negócios, ficou só com uma loja. Endividado, passou a pedir empréstimos e a hipotecar seus bens. Aos 60 anos, sofreu um infarto fulminante e não resistiu. Em Campos dos Goytacazes (RJ), um dentista tirou a própria vida com um tiro no ouvido. Sua família relatou à polícia que ele caiu em depressão ao saber que suas economias, depositadas na caderneta de poupança, tinham sido bloqueadas pelo governo. Com o dinheiro, ele planejava comprar um apartamento em Niterói (RJ) para os filhos. “Temos pouca confiança nas instituições financeiras. As famílias que viveram o drama do confisco, por exemplo, passaram esse medo para as novas gerações”, interpreta a psicóloga.
Dinheirofobia
No Brasil, a fobia financeira ganhou o apelido de “dinheirofobia”, dado pela consultora e jornalista Nathalia Arcuri. A autora do livro Me Poupe! — 10 Passos para Nunca Mais Faltar Dinheiro no Seu Bolso (Editora Sextante) se apressa em dizer que a dinheirofobia não é uma doença, mas uma maneira de descrever o medo que o brasileiro tem de pedir aumento de salário, de pagar apenas o que consumir na happy hour, de traçar planos para o futuro etc. Segundo Nathalia, essa fobia tem quatro fases: infecção, contágio, primeiros sintomas e estágio avançado.
Vamos por partes. Na maioria dos casos, a infecção pelo “vírus” da dinheirofobia ocorre na infância, quando a criança começa a ouvir frases tóxicas como “Ricos são maus e pobres são bons”, “Investir é para quem tem muito dinheiro” ou “O vizinho trocou de carro de novo. De onde será que vem tanto dinheiro?”
Já o contágio, em geral, manifesta-se na adolescência. É quando a vítima tende a repetir o que aprendeu em casa e a reproduzir comportamentos nada exemplares, como o do pai que gasta o que não tem, o da mãe que não poupa um centavo do que ganha e o do tio que vive pegando empréstimo no banco para pagar as dívidas.
A fase dos primeiros sintomas, prossegue Nathalia, costuma coincidir com o primeiro emprego. Por não saber como usar o salário que ganha, o indivíduo não pensa no futuro, não cria uma reserva de emergência e passa a desperdiçá-lo. A quarta e última fase é a do estágio avançado, quando o paciente já apresenta sintomas graves, quase irreversíveis, como descontrole financeiro e endividamento excessivo.
“Ninguém está imune à dinheirofobia. Eu tenho, você tem, todos temos. Assumir é o primeiro passo para lidar com ela”, aconselha a consultora, dona de um canal no YouTube com mais de 5,8 milhões de seguidores.
Fobia tem tratamento
Embora não seja um transtorno psiquiátrico, daqueles que figuram no Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, a fobia financeira não deve ser negligenciada. Em última instância, pode levar as contas e a qualidade de vida à bancarrota.
Para administrá-la, Thiago Godoy ensina que é preciso fazer um raio X do paciente. “Temos de entender sua situação financeira, descobrir se ele tem dívidas e, se tiver, traçar uma estratégia para quitá-las”, orienta o educador financeiro da Xpeed. Assim como um profissional ajuda a tratar o medo exacerbado de escuro ou de inseto, o apoio de um especialista aumenta as chances de sucesso contra a fobia financeira.
“Para quadros leves ou em estágio inicial, a psicoterapia poderá ser suficiente”, pontua a psicóloga Camila Magalhães Silveira, doutora em psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP). Indagado sobre o tratamento do problema, Burchell prescreve a terapia cognitivo-comportamental (TCC). Desenvolvida pelo psiquiatra sul-africano Joseph Wolpe (1915-1998), a TCC é cognitiva porque encoraja o paciente a perder seus medos por meio de argumentos lógicos, e é comportamental porque expõe o indivíduo, gradual e sistematicamente, ao objeto de seu pavor.
Se a saúde financeira do sujeito (ou a falta dela!) está impactando o bem-estar mental, provocando crises de pânico ou agravando quadros de depressão, é hora de procurar um médico. Em casos extremos, a pessoa, endividada ou inadimplente, chega a assumir comportamentos de risco e fazer uso de álcool ou drogas ilícitas. Dependendo dos sintomas, o psiquiatra pode prescrever medicamentos, como ansiolíticos ou antidepressivos.
“Muitas vezes, as pessoas demoram a pedir ajuda por vergonha. Elas se sentem incapazes e incompetentes. E pior: acreditam que, sozinhas, vão dar conta da situação”, alerta a psicóloga Valéria Meirelles, doutora em psicologia clínica pela PUC-SP e especialista em psicologia do dinheiro.
Além das sessões de psicoterapia, para chegar à origem da fobia, e da consulta médica, para tratar de seus desdobramentos no corpo e na mente, a economista Andreia Fernanda recomenda procurar um consultor financeiro para ensinar o cidadão a se planejar e a fazer melhores escolhas com a sua grana. Algumas instituições, como o Procon, o Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), oferecem inclusive orientação gratuita.
E hoje se multiplicam consultorias, plataformas e canais de conteúdo que ajudam pessoas dos mais diferentes perfis a estabelecer um orçamento doméstico saudável, a poupar e a investir. “De forma mais assertiva e sem tantos termos técnicos, precisamos naturalizar a conversa sobre dinheiro. Só assim ele vai deixar de ser tabu em nosso país”, defende Andreia. “Assim como a saúde mental precisa deixar de ser vista como ‘coisa de maluco’, a saúde financeira tem de deixar de ser ‘assunto para os ricos’”, diz a economista.
Remédio amargo
Por falar em saúde financeira, André Massaro recomenda não esperar os primeiros sintomas ou prejuízos para pedir socorro. Sabe aquele aforismo: “prevenir é melhor que remediar”? Ele também se aplica às nossas economias. “Assim como uma doença pode evoluir para uma situação terminal se não for tratada adequadamente, alguns problemas financeiros podem progredir para um buraco sem fundo, de onde a pessoa dificilmente sairá”, compara o consultor.
Mas como falar de fobia financeira em um país onde o desemprego bate sucessivos recordes e atinge mais de 13 milhões de pessoas? Para Massaro, até quem está à procura de uma nova oportunidade no mercado de trabalho precisa se preocupar com a saúde financeira. “Nesse caso, um tratamento alternativo para obter renda é o empreendedorismo. Só temos que lembrar que ele é um tratamento de alto risco, e não a cura para todos os males”, esclarece.
Sem diagnóstico e tratamento, fobias podem deixar um rastro de angústias e sonhos frustrados. Quantas oportunidades de viagem, a lazer ou negócios, uma pessoa com pavor de avião não vai perder? Quantas longas jornadas de carro ou ônibus não terão de ser encaradas? Com a fobia financeira, acontece mais ou menos a mesma coisa.
Por medo de lidar com o dinheiro, o sujeito não pede aumento, não guarda ou investe, não financia um imóvel… Enfim, não planeja o futuro. “Diante de uma ameaça qualquer, só temos duas opções: lutar ou fugir. Ficar em cima do muro ou empurrar o problema com a barriga não é uma decisão sensata. O aluguel atrasado de hoje pode se transformar na ordem de despejo de amanhã. Quanto mais tempo esperar, pior”, argumenta a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association (Isma-BR).
“Enquanto a fuga perpetua o problema, a luta encoraja o sujeito a resolvê-lo. Nesse caso, lutar não significa entrar em conflito, mas buscar uma solução”, completa. Sim, dinheiro na mão pode ser vendaval, mas, se souber usar, vai virar solução.
Teste: você tem fobia financeira?
O miniquestionário ajuda a identificar se você encara o problema na rotina.
Acha chato ter que verificar o saldo de sua conta ou a fatura do seu cartão?
( ) Não
( ) Quase nunca
( ) Às vezes
( ) Sim
Prefere não pensar muito se sua conta está no vermelho ou se entrou no cheque especial?
( ) Não
( ) Quase nunca
( ) Às vezes
( ) Sim
Pensar no que ganha e no que gasta por mês costuma fazê-lo se sentir culpado?
( ) Não
( ) Quase nunca
( ) Às vezes
( ) Sim
Pagar contas, discutir aumento ou negociar uma dívida costuma deixá-lo ansioso?
( ) Não
( ) Quase nunca
( ) Às vezes
( ) Sim
Acha que não vale a pena economizar porque, quando menos se espera, pode perder tudo?
( ) Não
( ) Quase nunca
( ) Às vezes
( ) Sim
Como chegar ao resultado e interpretá-lo:
Cada resposta é calculada da seguinte forma: “não” = 1, “quase nunca” = 2, “às vezes” = 3 e “sim” = 4. Some a pontuação obtida nas cinco questões. Quanto maior ela for, maior o nível de fobia financeira. A pontuação máxima é 20. Se obteve 15 ou mais, está entre os 20% do total de casos mais graves. Vale a pena procurar um profissional de saúde e/ou consultor financeiro.
Seis passos para cuidar da saúde financeira
Evite a procrastinação: demorar a tomar atitudes pode aumentar suas dívidas.
Monte uma planilha: no papel ou no computador, registre o que entra e o que sai e seu balanço mês a mês.
Monitore as despesas: olho vivo nas faturas e contas para não pagar a mais ou valores incorretos.
Pense no amanhã: mantenha uma reserva de emergência e faça investimentos ou uma poupança pensando lá na frente.
Peça apoio: está inadimplente ou endividado? Não tente resolver tudo sozinho. Peça ajuda a consultores ou amigos que entendem do riscado.
Equilibre o bolso e a saúde: quem disse que ser saudável exige rios de dinheiro? Dá pra caminhar ou correr no parque sem pagar nada, por exemplo.