Tratamento ‘edita’ DNA para salvar a vida de bebê nos EUA; entenda
Abordagem personalizada foi testada com sucesso em criança com doença rara. Estudo abre caminho à promissora estratégia terapêutica

Um novo capítulo na história da genética acaba de ser escrito por cientistas americanos e canadenses. Eles anunciaram ter realizado a primeira terapia de edição genética totalmente personalizada para salvar uma criança com uma doença rara.
O feito, apresentado no principal encontro de especialistas da área nos Estados Unidos e publicado no reputado periódico médico The New England Journal of Medicine, abre perspectivas de tratamentos com potencial de cura para distúrbios que limitam a expectativa e a qualidade de vida.
O bebê que recebeu a intervenção inédita é KJ, uma menina americana que nasceu com uma doença genética rara chamada deficiência de carbamoil fosfato sintetase I (CPS1).
Ela foi diagnosticada com apenas uma semana de vida com o quadro marcado pela incapacidade de o organismo remover amônia da circulação, fenômeno que lesa uma série de órgãos, deixa sequelas graves e é fatal para metade dos recém-nascidos.
Como atualmente o tratamento da doença é limitado, médicos capitaneados pelo Hospital Infantil da Filadélfia, nos EUA, se empenharam em testar uma ferramenta de edição genética para corrigir o trecho do DNA alterado por trás da enfermidade. E essa sacada ajudou a mudar o destino da criança, conhecida publicamente como KJ.
Edição genética em ação
O grupo responsável pela empreitada recorreu a uma tecnologia recente e laureada com um Prêmio Nobel conhecida como Crispr. Trata-se de um recurso de edição genética que, a grosso modo, permite localizar sequências do DNA problemáticas, recortá-las e substituí-las por genes normais.
Os cientistas empregaram essa estratégia para criar uma terapia sob medida para a criança com a deficiência rara mirando o gene CPS1 disfuncional. Para garantir que as instruções corretas chegassem ao fígado, o órgão responsável pela degradação e eliminação da amônia, eles envolveram a plataforma de Crispr em bolhas de gordura minúsculas capazes de blindá-las da ação do sistema imune.
Funcionou! A menina de meses recebeu a primeira dose da terapia gênica e apresentou melhoras, mas continuou tomando a droga convencionalmente utilizada para a doença. Com a segunda dose, menos de um mês depois, a dose do remédio tradicional pôde ser sensivelmente reduzida. A terceira dose foi aplicada e tudo indica que a criança está bem.
Não é possível dizer que a pequena KJ está curada, mas os cientistas estão animados com a perspectiva de zerar os estragos provocados pelo acúmulo de amônia no organismo. Isso significa um divisor de águas na vida da criança e para a medicina como um todo.
Potencial para o futuro
A notícia fez barulho no meio científico e na imprensa internacional por se tratar da primeira terapia personalizada à base de Crispr testada com êxito em um ser humano — e seguindo os protocolos técnicos e éticos rigorosos necessários.
“Esse estudo é da maior relevância pois indica que é possível corrigir um defeito genético através de uma tecnologia inovadora que introduz nas células moléculas especialmente desenhadas em laboratório e capazes de chegar até o DNA, identificar o local exato onde devem atuar e fazer a correção do gene, que passará a agir de forma adequada”, comenta o médico geneticista Roberto Giugliani, coordenador de doenças raras da Dasa Genômica.
“Isso abre caminho ao tratamento de milhares de doenças raras por meio de uma medicina customizada, e tudo indica que tal tecnologia possa ser oferecida a um custo razoável, algo especialmente importante para países como o Brasil”, afirma o especialista.
O médico geneticista Salmo Raskin, diretor científico da Sociedade Brasileira de Genética Médica, também celebra a conquista: “É um estudo importantíssimo, porque historicamente o diagnóstico de uma das 7 mil doenças raras implica ter aquela doença para o resto da vida, muitas vezes sem tratamento.”
“Esse trabalho demonstra de maneira clara e irrefutável que os 13 milhões de brasileiros com doenças raras agora podem sonhar com o dia no qual serão curados com tratamentos personalizados. Uma nova era da genética chegou. E não é mais futuro, já é presente”, avalia Raskin.
Outras terapias gênicas
Cabe contextualizar que o tratamento experimental recém-apresentado não representa a primeira terapia gênica da história. Já existem, inclusive disponíveis no país, tratamentos que corrigem genes defeituosos para frear doenças severas como a atrofia muscular espinhal (AME) e um distúrbio na retina capaz de resultar em cegueira.
Nesses casos, em vez de ferramentas como Crispr, usa-se um vetor viral (um vírus inofensivo) para entregar, na área do corpo desejada, o gene que estava faltando ou se encontrava disfuncional. Os resultados têm sido bastante satisfatórios, embora haja o desafio do custo (ainda astronômico) e do acesso.
Por ora, as aplicações são mais restritas a enfermidades causadas por uma mutação genética específica e evidente, o que é mais frequente entre condições raras e graves. Problemas crônicos como hipertensão, diabetes e obesidade costumam ter várias vias genéticas alteradas, dificultando uma abordagem do tipo.
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