O tocilizumabe, um moderno anti-inflamatório, vem sendo testado no tratamento da Covid-19, com resultados pendendo para os dois lados. Pois um novo estudo anota um ponto a favor desse remédio, ao mostrar que ele pode reduzir a mortalidade dos quadros mais críticos da doença.
A notícia vem do Recovery, mega iniciativa capitaneada pela Universidade Oxford, na Inglaterra. Em uma das pesquisas do projeto, mais de 4 mil pessoas internadas com o novo coronavírus foram divididas em dois grupos: metade só recebeu o tratamento convencional, enquanto a outra também recebeu o tocilizumabe.
Todas estavam em estado grave, boa parte já precisando de oxigênio. No fim da análise, 33% dos voluntários do primeiro grupo morreram, ante 29% do segundo segmento. A diferença significa que, a cada 25 pessoas utilizando o tocilizumabe nesse cenário, uma vida extra poderia ser salva, apontam os autores. A chance de alta em até 28 dias também foi superior com a droga.
Por que então o benefício é incerto?
Pra começo de conversa, os achados foram divulgados sem uma revisão dos pares (sem a análise de outros cientistas). Isso deve acontecer nos próximos dias, mas, enquanto isso, os dados carecem de confirmação e exigem uma dose extra de cautela.
“O estudo tem pontos fortes, mas há questões a serem consideradas. Por exemplo, 82% dos voluntários receberam corticoides, que já possuem ação anti-inflamatória”, comenta a intensivista e cardiologista Viviane Cordeiro Veiga, coordenadora de UTI da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Ou seja, pode ser que o benefício real venha dessa categoria, e o tocilizumabe apenas o potencialize. Além disso, outros estudos, feitos inclusive pela própria fabricante do composto, apontaram efeitos negativos. “Então temos evidências para os dois lados”, conclui o pneumologista Rodolfo Augusto Bacelar de Athayde, do Complexo Hospitalar Dr. Clementino Fraga, de João Pessoa/PB.
Recentemente, uma das pesquisas do projeto britânico Remap-Cap indicou que usar a droga nas primeiras 24 horas na UTI reduz em até 24% o risco de morte por Covid-19. Já a Coalizão Covid-19 Brasil, outra iniciativa de grande porte, viu o contrário: um aumento dos óbitos relacionado à estratégia, que levou à interrupção dos estudos.
Para os especialistas, a contradição indica que o remédio deve funcionar apenas em certos contextos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) conduz uma força-tarefa que revisa estudos com ele para entender quem se beneficiaria mais da abordagem. “Já sabemos que não é todo mundo. Agora precisamos descobrir se são, por exemplo, os indivíduos entubados, ou os que já estejam tomando um tipo de medicamento”, aponta Viviane, representante do país na empreitada.
Como atua o tocilizumabe
Os quadros mais graves de Covid-19 estão ligados à resposta exagerada do sistema imune. É a chamada tempestade inflamatória, uma liberação em massa de citocinas e interleucinas, Em excesso, essas substâncias danificam tecidos, vasos sanguíneos e órgãos do corpo.
“A ideia é bloquear uma dessas moléculas, a interleucina-6, que atua como mensageira para a liberação de fatores inflamatórios”, explica Athayde. O tocilizumabe, da farmacêutica Roche, foi desenvolvido e aprovado justamente para combater mazelas que deflagram inflamações sistêmicas, como a artrite reumatoide.
Ele pertence à categoria dos anticorpos monoclonais, remédios biológicos que ganharam fama nos últimos anos pela precisão. “Diferentemente dos anti-inflamatórios tradicionais, que têm um efeito mais amplo de imunossupressão, esse tipo de terapia é como um míssil teleguiado, atuando em pontos específicos do processo”, compara Athayde.
Há muitos deles em teste contra a Covid-19, mas o tocilizumabe é o que está se saindo melhor nas pesquisas com o coronavírus. “Temos um bom caminho a percorrer em relação ao estudo dessa classe”, pontua Viviane. E apesar de a ciência ainda não ter batido o martelo, Reino Unido usou o Recovery como justificativa e passou a adotar o fármaco no tratamento da Covid-19 grave.
O recado final (do momento)
Mesmo que os estudos futuros confirmem o valor do remédio, ele não será uma bala de prata. Primeiro porque, como vimos, não é todo mundo que se sairia bem com ele. Segundo: existem limitações práticas do uso. Sua fabricação exige material biológico, o que limita a capacidade produtiva e aumenta o custo.
O British Medical Journal, renomado periódico, comenta o achado com ressalvas semelhantes. O custo do tratamento no contexto da Covid-19, segundo a publicação, é de 500 libras por pessoa (o equivalente a mais de R$3 700 reais).