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“Popularizar a ciência é um dos pilares para enfrentar o negacionismo”

Autor do livro "Não há mundo seguro sem ciência", cientista da Unicamp Luiz Carlos Dias compartilha reflexões sobre desinformação e o fazer científico

Por Lucas Rocha
Atualizado em 14 out 2024, 11h50 - Publicado em 14 out 2024, 11h49
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Cientista Luiz Carlos Dias, autor do livro "Não há mundo seguro sem ciência" (Foto: Kamá Ribeiro/Jornal Correio Popular/Divulgação)
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Na pandemia de Covid-19, cientistas se viram diante de uma dupla batalha. De um lado, o enfrentamento a um vírus emergente, capaz de provocar uma doença de proporções surpreendentes. Do outro, o combate à desinformação,  já que a crise sanitária foi um terreno fértil para a disseminação de mitos e notícias falsas.

O relato contundente de um desses incontáveis pesquisadores compõe o livro Não há mundo seguro sem ciência (Editora Paraquedas – Clique para comprar*), do doutor em química Luiz Carlos Dias, membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Com linguagem acessível, a obra conta a emergência sanitária por outro ângulo, avaliando o impacto do negacionismo e da desinformação.

O conteúdo reúne as principais fake news disseminadas no período e aborda temas como movimento antivacina e o chamado “kit Covid”, que consistia em uma série de medicamentos ineficazes contra a doença.

Aborda ainda, entre outros aspectos, como é feito o desenvolvimento de vacinas, alvo frequente de informações falsas.

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Em entrevista à VEJA SAÚDE, o cientista compartilha percepções sobre comunicação, redes sociais, negacionismo e método científico. Confira!

VEJA SAÚDE: Um trecho do livro afirma “A ciência não lida com opiniões pessoais, com achismos e nem com verdades absolutas, pois a verdade em ciência é transitória”. Por que esse ainda é um conceito de difícil entendimento?

Luiz Dias: A ciência é a contínua busca pela verdade que utiliza o método científico, estratégia que emprega metodologias sistemáticas para produzir conhecimentos com evidências sólidas, cujos resultados podem ser reproduzidos. Creio que falta para as pessoas, incluindo médicos, o entendimento de que a ciência é baseada em fatos e em evidências.

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Os negacionistas usam e abusam das mídias sociais para espalhar teorias delirantes inventadas, com o objetivo de desacreditar a ciência e as universidades públicas. As pessoas procuram informações que confirmem as suas crenças e descartam aquelas que são contrárias ao que acreditam. Esse fenômeno é conhecido como viés de confirmação.

O funcionamento das redes sociais também aumenta a polarização entre as pessoas. As mensagens falsas trabalham com gatilhos, que despertam algum tipo de sentimento, como alarme, pânico, nojo ou revolta. Pessoas com um senso menor de pertencimento social, que não se sentem amparadas pela sua rede de relacionamentos, consomem mais fake news e teorias da conspiração.

+ Leia também: Eleição do CFM é um tapa na cara da ciência

A pandemia mostrou como se dá a construção do saber científico na prática. O que sabemos hoje pode ser atualizado amanhã, sem que isso seja qualquer motivo de descrédito da ciência. Ainda assim, essa evolução no conhecimento foi apontada como uma espécie de contradição, com o objetivo de descredibilizar pesquisadores. Como você avalia esse paradoxo?

Uma das estratégias dos negacionistas é desqualificar o debate científico. Eles defendem opiniões pessoais, achismos, questões político-ideológicas, religiosas e pautas de valores e costumes como sendo mais importantes que a ciência.

Distorcem estudos de qualidade publicados nas melhores revistas científicas, defendem análises de baixo nível publicados em revistas predatórias, além de pesquisas malfeitas baseados em observações tendenciosas.

Defendem as pseudociências, pois muitas vezes essas não são verificáveis e nem refutáveis. A estratégia deles é dizer: prove que não funciona, mas é difícil provar a falsidade de suas hipóteses. Essa estratégia de desqualificação da ciência e das instituições públicas deixa a população sem referência para tomada de decisões.

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+ Leia também: “Procure um médico, não a internet”, defende especialista em obesidade

Como você avalia a contradição de um mundo cada vez mais avançado em tecnologia e no acesso à informação convivendo com a emergência da negação às vacinas?

O movimento antivacina e a hesitação vacinal são considerados uma das dez maiores ameaças a saúde global, pela Organização das Nações Unidas. É lamentável, as vacinas salvam milhões de vidas e são nossa melhor ferramenta de saúde pública, junto com alimentos, antibióticos e saneamento básico.

No caso da vacinação de crianças abaixo de 5 anos contra a Covid-19, a desinformação venceu. Tivemos apenas cerca de 15% das crianças imunizadas com duas ou três doses. Mais de 3 500 crianças e adolescentes morreram devido à doença até o final de 2022. Vimos líderes religiosos, pseudocientistas, alguns jornalistas, blogueiros, influenciadores digitais, políticos e membros do alto escalão do então governo federal atuando contra as vacinas e a favor do vírus.

Temos visto avanços na cobertura vacinal de crianças a partir de 2023, mas precisamos urgentemente dialogar e reeducar nossa sociedade para que volte a acreditar na estratégia de imunização e o país volte a ser referência mundial em vacinação.

+Leia tambémPor que o movimento antivacina não tem um pingo de sentido

Desinformação e golpe andam juntos?

Charlatanismo e golpes são um negócio muito rentável no Brasil e os negacionistas assustam a população, defendendo bandeiras político-ideológicas, questões religiosas e interesses financeiros escusos.

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Veja como alguns médicos se envolveram na luta contra a vacinação estão enriquecendo com a farsa dos tratamentos de detox vacinal ou terapia de reversão vacinal, para anular supostos “efeitos adversos” das vacinas Covid.

Eles vendem tratamentos alternativos, cursos, livros, suplementos, consultorias, vitaminas, remédios variados e terapias alternativas, incluindo falsas estratégias à base de ozonioterapia e outro à base de biorressonância para eliminar metais pesados. É um mercado altamente perverso lucrando com a desinformação.

+ Leia também: “Pare de Engolir Mitos”: livro desvenda mentiras sobre alimentação

Nunca se falou tanto em negacionismo. Quais caminhos temos para driblá-lo?

O fenômeno da desinformação é considerando um dos maiores riscos globais, juntamente com as mudanças climáticas e a polarização política e social.

Não há dúvidas que nós precisamos chegar a um uso mais equilibrado das plataformas digitais, pois as pessoas passam muito tempo nas redes sociais, produzindo atitudes baseadas no conteúdo que consomem neste ecossistema.

Para habitar este planeta de forma saudável, precisamos aprender a lidar com esse ecossistema de desinformação e formar parcerias efetivas com as plataformas de redes sociais. Elas também precisam ser reguladas e ter transparência.

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Além do letramento digital, popularizar a ciência é um dos pilares para enfrentarmos o negacionismo científico. Precisamos de um programa amplo, uma política de Estado para educação e divulgação científica.

Algumas outras ações são importantes, como o fortalecimento de museus e de centros de ciência, feiras de ciências nas escolas e praças, fomento a olímpiadas científicas, apoio e incentivo para ações de popularização da ciência e de divulgação científica.

O ranking Confiabilidade Global da Ipsos de 2022 apontou que professores, cientistas e médicos estão entre os grupos que os brasileiros mais confiam. É um respiro?

Penso que sim, mas nós temos muitos médicos e cientistas espalhando desinformação em áreas como saúde e meio ambiente. As últimas pesquisas de opinião mostram que a confiança dos brasileiros na ciência permanece relativamente alta, principalmente depois da pandemia.

Como coloquei no meu livro, eu creio que não existe um movimento “anticiência” organizado no Brasil, mas parcelas da sociedade rejeitam alguns pontos, temas ou conceitos específicos que contradizem suas crenças.

A desconfiança da ciência pode até ser maior entre pessoas com nível de escolaridade mais elevado e pleno acesso a informações de qualidade. Questões como posições ideológicas e religiosas influenciam algumas pessoas a acreditarem em narrativas falsas específicas, mas não em todo tipo de desinformação científica.

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Para você, qual o papel da divulgação científica nesse contexto?

A população precisa se identificar com a ciência e com os cientistas, que dependem muito do apoio popular. Para isso, vamos precisar de cientistas que saibam se comunicar com o público.

No entanto, a polarização política também está minando a ética universitária e alguns órgãos de classe na área de saúde. Infelizmente, muitos profissionais usam suas credenciais acadêmicas para dar um verniz de legitimidade científica a argumentos falsos.

Portanto, penso que nós, cientistas e pesquisadores, precisamos nos reinventar. Precisamos que as nossas universidades e instituições de ensino e pesquisa entrem ativamente na produção de conteúdos de qualidade para a grande parcela da sociedade que não tem acesso a essas informações.

As atividades de divulgação devem ser consideradas componentes intrínsecos das atividades científicas, tão importante quanto o ensino e a pesquisa, no enfrentamento às narrativas contrárias à ciência.

Os cientistas têm que ajudar no enfrentamento, ou os negacionistas vão tomar conta de todos os espaços. E eles são muito organizados e fazem isto muito bem.

Além disso, o jornalismo científico de qualidade é uma das melhores estratégias de conexão entre o meio científico e a sociedade e deve ser considerado fundamental para divulgar ciência.

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O que mais é preciso para combater adequadamente às fake news?

Combater essa máquina estruturada de produzir desinformação deve ser uma tarefa contínua que requer esforços coordenados de autoridades e profissionais de saúde, organizações governamentais, mídia e setores organizados da sociedade civil.

Além das questões relacionadas à divulgação da ciência, precisamos investir em educação formal nas escolas, assim como em educação informal, pelas mídias jornalísticas.

Muitos dos veículos de mídia digitais produzem desinformação utilizando uma estética muito similar à de veículos jornalísticos. O objetivo é fazer com que as pessoas acreditem que este portal seja uma fonte confiável, quando não é.

Precisamos construir um ecossistema de governança digital para que as plataformas adotem políticas mais efetivas de moderação de conteúdo, buscando um equilíbrio entre liberdade de expressão e interesse público.

Por fim, deve-se lembrar que temos que combater quem produz desinformação, mas proteger as vítimas deste processo. É necessário sempre adotar uma abordagem empática, ouvindo as preocupações e dúvidas das pessoas de forma compreensiva.

Neste processo, conquistando a confiança das pessoas, evitando confrontação ou críticas, o que pode levá-las a se afastarem ainda mais da informação correta.

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