Olhe a montagem fotográfica aí de cima, que abre esta reportagem. Apesar das feições, expressões, penteado e pele completamente diferentes, a imagem é da mesma pessoa: a fotógrafa Viviane Arruda, ou Vivi, com ela mesma prefere ser chamada. Entre uma expressão triste e outra feliz, ela possui uma daquelas histórias que merecem ser compartilhadas.
Vivi casou-se com o príncipe de seus sonhos. Mas o que era pra ser um conto de fadas se transformou em pesadelo: ao dizer para o marido que não estava feliz com a nova vida a dois, foi agredida inúmeras vezes. Seu esposo era extremamente brutal e sempre dava socos no rosto — seu objetivo era impedir que ela saísse de casa por sentir vergonha dos hematomas aparentes.
Um dia, Vivi tomou coragem e conseguiu se livrar do relacionamento abusivo. Começou outra vida como empregada doméstica. Sua nova patroa, vendo o estrago de tanta violência, custeou um tratamento bucal, inclusive com a colocação de próteses e implantes que restauraram seu sorriso.
Mas o infortúnio voltou a dar as caras: o agora ex-marido descobriu onde Vivi se encontrava e armou uma emboscada. Ela sofreu diversas agressões pelo corpo, inclusive com os novos dentes quebrados e tortos novamente. Você pode ouvir o relato completo no vídeo abaixo:
A história de Vivi guinou para um caminho mais feliz em 2016, após ela conhecer o projeto Apolônias do Bem — o nome “Apolônias” vem de uma personagem histórica que morreu na cidade de Alexandria em 249 d.C., após ser espancada e ter seus dentes quebrados.
Capitaneada pelo cirurgião-dentista Fábio Bibancos, a ong trabalha para oferecer atendimento e tratamento odontológico gratuitos a mulheres vítimas de violência de todo o Brasil. Desde sua criação em 2012, a iniciativa ofereceu assistência a mais de mil pacientes.
Durante o Congresso Internacional de Odontologia de São Paulo (Ciosp), que ocorreu na última semana de janeiro, Vivi compartilhou um pouco de sua biografia com as pessoas que passavam em frente ao estande do projeto. Após mostrar o vídeo que conta sua história num tablet, ela confessou: “Nunca tive coragem de assistir esse filme até o fim”.
Depois do tratamento que devolveu o sorriso ao seu rosto, Vivi fez um curso e hoje é fotógrafa profissional — inclusive, dedica parte de seu tempo à ong que a acolheu no passado, retratando as mulheres beneficiadas pelo trabalho.
A garantia de um beijo, uma boa nota e uma ocupação
A ideia de criar o “Apolônias do Bem” veio de outro projeto iniciado em 2002: o Turma do Bem, que foca em jovens de 11 a 17 anos. “A adolescência é uma fase decisiva e qualquer problema na dentição impacta em relacionamentos amorosos, no rendimento escolar e até na conquista do primeiro emprego”, justifica o dentista voluntário Fernando Santos.
A proposta é simples: todo especialista em saúde bucal tem um período do dia ou da semana ocioso, sem consultas agendadas. Por que não aproveitar esse tempo vago para oferecer de graça atendimento aos jovens que não têm condição de arcar com os custos?
Prestes a completar a maioridade, o Turma do Bem já reúne 17 400 dentistas espalhados não só pelo Brasil, mas também pela América Latina e por Portugal. Nesse meio tempo, mais de 78 mil adolescentes foram beneficiados.
“Nós promovemos a inclusão social por meio da odontologia”, acredita Santos, que se tornou um embaixador da causa. “Conheci a Turma do Bem aqui no Ciosp há alguns anos, enquanto passeava pelos estandes. Me apaixonei e hoje sinto orgulho de fazer parte de algo tão significativo”, completa.
O trem do sorriso mais forte do que nunca
Outro grupo vulnerável que se beneficia da boa vontade e do engajamento de milhares de profissionais é o de indivíduos com fissura lábio-palatina. Estima-se que 1 a cada 600 bebês brasileiros nasce com esse problema, marcado por uma fenda que pode se estender do lábio até o palato (o céu da boca). Para corrigir essa falha, são necessárias diversas cirurgias, que se iniciam nos primeiros meses de vida e terminam apenas quando o sujeito chega aos 18 anos.
Para dar o suporte financeiro necessário, a ong Smile Train atua em diversos países, inclusive no Brasil. A proposta é captar recursos financeiros para custear as operações e as terapias de suporte que garantem saúde e qualidade de vida aos fissurados. No nosso país, eles mantêm parceria com 40 hospitais e, só em 2019, custearam 5 800 cirurgias. No mundo, 1,5 milhão de operações do tipo receberam financiamento com as doações em 21 anos de atuação.
Solidariedade em alta
Em 2014, o projeto ProFace, realizado no Hospital Geral de Goiânia Alberto Rassi ganhou destaque no Prêmio SAÚDE. Em menos de um ano, cirurgiões conseguiram zerar uma fila de espera de 500 pessoas que precisavam passar por certos ajustes no rosto. O objetivo é corrigir, por exemplo, a mandíbula projetada (prognatismo) ou retraída (retrognatismo), desencaixes na articulação temporomandibular (ATM), lábio leporino, traumas e mutilações. Tudo feito pelo Sistema Único de Saúde, sem pesar no bolso dos pacientes.
Por fim, vale lembrar o trabalho incansável da ong Expedicionários da Saúde, que monta um hospital no meio da mata para oferecer serviços básicos a populações indígenas. Entre as opções disponíveis, há um consultório odontológico, que faz limpezas e remoção de cáries em crianças, adolescentes e adultos.
Nesses povoados, é bastante comum o consumo de alimentos duros e ricos em açúcar. Para piorar, a orientação de higiene bucal é escassa, quase nula. Além dos atendimentos, os dentistas se preocupam em distribuir kits com escova, creme e fio dental e ensinam a criançada com fazer a limpeza de dentes, língua e gengiva.
Os projetos que cuidam dos sorrisos país afora são uma fonte de inspiração — e dão aquela sensação boa de que o mundo tem conserto.