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“O coronavírus exige no mínimo 65 vezes mais hospitalizações que a gripe”

O virologista Paolo Zanotto, que antecipou o cenário atual da Covid-19, discute particularidades do vírus Sars-Cov-2 e o que esperar da pandemia no Brasil

Por Theo Ruprecht
Atualizado em 18 ago 2020, 10h48 - Publicado em 17 mar 2020, 21h07

O virologista Paolo Zanotto está vivendo em função do novo coronavírus, também chamado de Sars-Cov-2. Ao chegar para a entrevista marcada no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), eu o encontrei na porta de sua sala discutindo com colegas sobre os próximos passos para as pesquisas voltadas contra essa doença — e sobre medidas de proteção no ambiente onde trabalha.

Zanotto participou ativamente das discussões que terminaram na suspensão das aulas na USP. Também esteve entre os primeiros pesquisadores a anunciar, em suas redes sociais, que a Covid-19, enfermidade provocada pelo novo coronavírus, exigiria grandes esforços coletivos para não causar estragos ainda mais severos no mundo. “Um trabalho mostrou que o vírus pode ser transmitido eficientemente por portadores assintomáticos […]. Tudo indica que estamos caminhando a passos certos para uma pandemia. Fiquem atentos”, escreveu, no dia 22 de fevereiro.

Quatro dias depois, o primeiro caso do novo coronavírus foi diagnosticado no Brasil. A pandemia foi declarada pela Organização Mundial da Saúde no dia 11 de março.

Quando Zanotto terminou a conversa com seus colegas, veio em minha direção, parou a uma distância de mais ou menos dois metros, fez um sinal para eu não me aproximar mais e então me cumprimentou amigavelmente. “Melhor mantermos o distanciamento. É para sua proteção”, reforçou. A entrevista aconteceu em um espaço amplo e comunitário do segundo andar do ICB-2. Eu me sentei em um sofá, e ele, em outro, a uma “distância segura”, com o gravador ao seu lado.

Ao longo da conversa, Zanotto revelou as particularidades do Sars-Cov-2, refutou as comparações de gravidade entre essa infecção e a gripe, abordou a eficiência das medidas adotadas recentemente pelas autoridades… Confira:

SAÚDE: começando pelo vírus, o que o Sars-Cov-2 traz de novo que gerou tantos casos e tanta reação?

Paolo Zanotto: ele tem um potencial elevadíssimo de risco, porque combina transmissão respiratória, que geralmente são vírus com muita facilidade de disseminação, com a transmissão oral-fecal. Ele infecta o intestino e as pessoas liberam uma quantidade enorme de partículas infecciosas com as fezes e, com isso, contaminam ambientes compartilhados.

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Há muita gente comparando a gravidade do novo coronavírus com o de uma gripe comum. O que podemos dizer sobre esse assunto?

Isso é uma posição baseada em ignorância. Os fatos mostram que não é que nem um vírus de gripe. É muito pior. Primeiro por causa dessa dupla modalidade de transmissão, pegando o pior de vírus entéricos [que infectam o intestino], que geralmente causam surtos avassaladores em espaços confinados, com o de um vírus respiratório.

Tem outro aspecto devastador. O coronavírus exige no mínimo 65 vezes mais hospitalizações do que o influenza, causador da gripe. O coronavírus tem propensão e está mostrando capacidade de saturar e colapsar os sistemas de saúde no mundo todo. Nos lugares onde não houve contenção, o sistema de saúde ficou disfuncional.

E o novo coronavírus tem uma letalidade maior do que a gripe, não?

O impacto de mortalidade está completamente associado à capacidade de o sistema hospitalar responder ao surto. Na Itália, hoje tem pessoas morrendo nas ruas, inclusive jovens, o que é apavorante, porque não têm tratamento. Lá já fizeram a opção de passar idosos com comorbidades para tratamento paliativo e entubar os mais jovens. Olha a escolha de Sofia que está sendo feita por falta de certas medidas.

Aqui no ICB, vocês têm feito estudos com o novo coronavírus?

Sim, desde o começo do ano. Tem pessoas trabalhando na parte de imunógenos, fazendo uma coisa na linha de vacinas, pessoas isolando o vírus, muita gente sequenciando o seu genoma para ver se está em processo de mutação.

E temos feito estudos com outros grupos para, por exemplo, testar fármacos para ver se agem contra o vírus. Uma das coisas que queremos fazer é testar remédio que já fazem parte da farmacopeia brasileira, para não precisarmos importar substâncias. A gente tem conversado bastante sobre esse assunto.

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Há um bom tempo você tem falado que deveríamos adotar estratégias mais restritivas no Brasil. Essas novas medidas do ministério e de alguns estados são suficientes?

Nós temos basicamente dois grupos de pessoas: um que achava que o ideal era esperar a infecção andar mais antes de tomar qualquer decisão que pudesse afetar o cotidiano. E outro que defendia que quem deixou a coisa andar perdeu o controle do coronavírus. Esse grupo defende ações para achatar a curva de crescimento do vírus, para impedir um crescimento muito rápido de casos. Porque se tiver um aumento muito rápido, de uma vez só, você imediatamente satura o sistema hospitalar. Aí ele entra em colapso, o que aumenta bastante a mortalidade e causa disfunção social por causa do absenteísmo, de medidas muito drásticas de contenção que serão tomadas tardiamente.

O que o governo fez agora é inteligente. Eles começaram com as duas pernas importantes de intervenções não-farmacêuticas: distanciamento social e testagem. A gente precisa testar para saber quem precisa ser isolado e manter distância social para diminuir a transmissão da doença. Tanto o governo de estado de São Paulo como o federal não deram muito ouvido para as pessoas que falaram que não é nada disso, que é só uma gripinha, e tomaram as atitudes necessárias.

Em locais que adotaram essas estratégias, como Hong Kong, Singapura, Japão e Coreia do Sul, a dinâmica da pandemia tem funcionado melhor. Eles achatam a curva de crescimento. Essas técnicas são fundamentais para a gente ter uma chance contra o coronavírus.

Eu fiquei totalmente surpreso, porque vários especialistas que estão dando informações para os gestores estavam desinformados. Não no mau sentido, não é que sejam ignorantes. Mas não estavam acompanhando com agilidade os eventos que estão acontecendo fora do Brasil. Porque realmente as coisas mudam a cada semana. Tem que ficar de dia trabalhando e à noite indo atrás de informação para o dia seguinte, porque a coisa está muita rápida.

A gente superou os 200 casos confirmados. Esse tipo de atitude não teria que ser tomado antes?

Pegue por exemplo as cidades de Bergamo e a Lodi, ambas na Itália. As duas estão na Lombardia, as duas são extremamente ricas. Mas Lodi entrou duas semanas antes com as técnicas que falei do que Bergamo.

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Se você abrir hoje em dia o jornal de Bergamo, tem quase dez páginas de obituário. Contra uma página há algumas semanas atrás. A mortalidade em Bergamo está assustadora, porque fez interferências pouco depois de Lodi. Quando o crescimento é exponencial, cada minuto conta.

Mas nesse caso, vocês conseguem saber em que estágio do surto adotar essas medidas? A gente passou do ponto?

Na semana passada, a gente tinha 50 e poucos casos confirmados no Brasil. Agora estamos indo para quase 300. Já está acontecendo um crescimento exponencial aqui. Mas a Coreia estava em estágio avançado de dinâmica exponencial e conseguiu achatar a curva de crescimento com as intervenções não farmacêuticas. Sempre há o que fazer.

A suspensão das escolas é uma boa medida?

É uma coisa fundamental. A questão central das escolas, inclusive saiu um trabalho nessa semana, é a de que os assintomáticos transmitem muito o vírus. E crianças são vetores assintomáticos. Então, ao afastar as crianças, você está minimizando a transmissão em um segmento que pode ser muito importante na dinâmica da epidemia como um todo.

A questão problemática é a comida. Porque as crianças no Brasil vão à escola para comer. Ainda bem que o governo entendeu essa realidade e está mitigando essa questão da seguinte maneira: quer deixar sua criança em casa? O governo leva comida para ela. Nessa semana vão sair resoluções como essa.

A segunda coisa é onde as crianças vão ficar. Foi um problema na Itália. O governo recomendou que crianças e idosos devem ser separados da maneira possível, o que achei extremamente sábio. Se estão habitando o mesmo espaço, devemos dividir esse espaço bruscamente e não deixar as crianças chegarem a menos de dois metros dos idosos. Devemos manter um banheiro para os idosos, ou, se a criança for usar, limpar muito bem depois. E não pode ficar agarrando, beijando.

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Isso pode ser difícil para as avós e os avôs.

Dificílimo! Imagine um avô que não pode abraçar o neto. Olhe a realidade terrível que a gente vai viver. Mas o neto tem que entender que esse avô precisa viver e que pode proteger o avô dele lavando as mãos e mantendo uma distância da vovó e do vovô.

É uma forma diferente de mostrar amor…

Essa é a forma superior de amor. É aquela na qual você se preocupa com a vida do outro.

Você também falou da testagem. Sociedades médicas têm receio de que faltem testes para avaliar todo mundo. Como vê isso?

O problema da testagem é simples: os exames têm que ser priorizados. Uma coisa errada que está acontecendo envolve pessoas histéricas que buscam esse recurso sem necessidade. De uma certa forma, tem que ter priorização.

A testagem deve ser indicada para pessoas com sintomas ativos e os contatos dela, fazendo o rastreamento de maneira rígida. Porque esse rastreamento é o que diferencia os países que conseguiram achatar a curva.

Um estudo australiano estimou de 257 mil a mais de 1 milhão de mortes no Brasil, no pior cenário, em um ano de surto. Esses modelos matemáticos são confiáveis?

A maior parte desses modelos com coronavírus tem convergido. Eles se baseiam na mesma estrutura formal, ou seja, nas mesmas equações e premissas. O que diferencia o resultado é a quantidade de pessoas que uma pessoa infecta. E no início se pensava que uma pessoa com esse vírus infectava outras duas, em média. Mas a gente percebeu na Coreia que esse valor é de no mínimo 6,7. Na Coreia, eles estavam fazendo um rastreamento intenso e dedicado e, com isso, conseguiram estimar melhor esses valores.

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E existe o que chamamos de superespalhadores. São indivíduos que chegam altamente contaminados e vão para um lugar, como no transporte público, e passam o vírus para muito mais do que 6,7 pessoas. Isso é perigoso.

Se a gente assumir taxas mais elevadas, que estão sendo evidenciadas em condições reais de contato, você chega ao fato de que essa pandemia pode ser avassaladora. Então os números reais podem ser mais complicados do que o do estudo australiano.

Quantos brasileiros podem ser infectados?

O epidemiologista Eduardo Massad, que é muito bom, estimou esses valores. Ele usou uma taxa de reprodução de um pouco acima de 1. Ou seja, a mais conservadora possível, porque é bem abaixo daquele 6,7 que falei agora pouco. E ele está estimando mais ou menos 100 mil pessoas infectadas no estado de São Paulo nos próximos meses, com 5 mil mortes.

Só que essa taxa de reprodução é extremamente conservadora. Eu gostaria demais que ele estivesse certo, mas acho que temos de nos preparar para o fato de essas quantidades serem extremas.

Mas medidas de distanciamento social podem reduzir esses números?

Sim.

Há alguma noção do tempo que devemos ficar sob essas medidas mais restritivas?

Isso depende da dinâmica. Pode ser que daqui dois meses tenha uma situação bem diferente de agora, para melhor ou pior. A gente vai ter que viver isso. Mas as estimativas feitas para uso de leitos nos Estados Unidos é que lá por maio acham que não vai ter mais.

E tem o problema dos insumos para testes e para tudo que é necessário nos hospitais. A Índia, no dia 4 de março, proibiu a exportação de 26 sais que são fundamentais para a produção de vários remédios que vamos precisar. A Alemanha também está proibindo a exportação de tudo o que possam ter que usar por lá nessa circunstância. Então a Índia, a Alemanha e a China estão dificultando um pouco, obviamente pensando no povo deles. Mas isso pode agravar a situação.

Olhando para atitudes individuais. Eu, por exemplo, participo de um grupo de futebol e o pessoal está indo jogar normalmente. Minha turma deveria fazer isso? (risos)

Olha, jogando um futebol bacana no qual vocês fiquem a dois metros de distância um do outro, talvez. Vocês podem inventar um futebol diferente, um futebol anti-surto, que pode ser interessante. Precisa bolar as regras. (risos)

Mas cada brasileiro deveria se preocupar mais?

A Áustria, por exemplo, está proibindo encontros de mais do que cinco pessoas. Na França, se você é pego andando na rua, vai ganhar uma multa de 200 euros. Cada grupo de gestão está chegando a uma conclusão, mas todos estão adotando distanciamento social. Isso nunca é ruim.

A atividade econômica vai sofrer muito?

Sim, vai ter um efeito seríssimo para várias economias. Na China, uma semana atrás saíram dados sobre atividade de poluentes atmosféricos. A quantidade de NO2 troposférico ficou equivalente à Coreia do Norte, que não é industrializada. Tem algo sério acontecendo lá.

As pessoas acham que São Paulo consegue reabastecer a cidade em 48 horas. Foi o que a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] me informou. Mas estão fazendo essa conta, porque caminhões estão funcionando, as lojas têm gente para receber material, não está havendo colapso das estruturas de funcionalidade social. No momento em que a doença escapa de controle e tem crescimento rápido, a tendência é essas atividades que mantêm a funcionalidade social serem afetadas.

E fora que aí as autoridades terão que tomar medidas mais drásticas, certo?

Essa é uma decisão para cada gestor, com base no contexto e no entendimento do problema. Ele vai ter que decidir e se responsabilizar. Nós, como cientistas, podemos dar nossa opinião técnica. E o que eu digo é baseado em fatos. Minha opinião disso ou daquilo é irrelevante. O que importa na verdade são os dados, as curvas de crescimento de casos e como o achatamento dessas curvas se associa a diferentes tipos de medidas.

Mas é difícil colocar tantos diferentes dados em uma decisão, não?

Pois é. Você está fazendo malabarismo entre três problemas que vai precisar equilibrar. O primeiro é a manutenção da funcionalidade econômica. O segundo é operação dos hospitais, que não podem colapsar. E o terceiro é manter a epidemia sob baixa taxa de infecção. O equilíbrio entre esses três elementos é fundamental.

As autoridades estão tomando boas medidas?

Eu estou surpreso. O ministro da Saúde tem tido atitudes extremamente razoáveis. O governador do estado de São Paulo tem dado declarações razoáveis. É uma luz. Mas, à medida que vamos evoluindo, precisamos seguir fazendo acertos.

Por exemplo: devemos resolver logo a questão do transporte público. Talvez a melhor maneira seria as empresas não exigirem que funcionários cheguem no mesmo horário para acabar com o horário de pico no transporte público.

Em paralelo, os responsáveis devem adotar um sistema de limpeza dos ônibus e vagões de metrô com hipoclorito, com cândida diluída 13%. Todas as empresas de ônibus deveriam estar limpando ônibus. Eles vão acabar quebrando, não estão entendendo que um ônibus porco é o fim de uma empresa, ela vai ser interditada. Se a coisa ficar muito ruim, o governo vai fazer testagem do nível de contaminação de transporte público.

Eu não ficaria nem um pouco surpreso se amanhã algum sistema de transporte fosse vetado. ‘Olha, vocês não pensam em pessoas. Então que carreguem saco de feijão, mas gente, não’. Vamos ter que atingir esse nível de seriedade em algum momento.

Mas eu estou vendo sinais bons também. Estou vendo distanciamento social voluntário. Shopping centers e clubes vazios no domingo. Isso mostra que o nível de conscientização está aumentando. Precisamos seguir falando para aumentar essa conscientização.

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