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Hepatite C tem cura: o plano brasileiro para eliminá-la até 2030

O governo anunciou essa meta. Mas, para entender se ela é possível, é vital saber o que é a hepatite C, como se pega e quais os tratamentos atuais

Por Theo Ruprecht
Atualizado em 8 Maio 2023, 11h17 - Publicado em 18 set 2018, 10h50
Como se pega hepatite c e como tratar
Avanços rápidos na medicina permitem vislumbrar um futuro com muito menos casos de hepatite C (Foto: Alex Silva/A2 Estúdio)
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O vírus da hepatite C (VHC) foi descrito pra valer só em 1989, mais de dez anos após a descoberta dos agentes por trás das hepatites A e B. O primeiro tratamento minimamente eficaz contra essa infecção crônica chegou ao público em 1993. Eram as injeções de interferon, que, seis anos depois, ganhariam a companhia dos comprimidos de rivabirina. Em conjunto, os dois garantiam uma taxa de cura de 40%, à custa de pesados efeitos colaterais, como anemia e depressão.

Já em 2013, os brasileiros passaram a contar com os medicamentos boceprevir e telaprevir, que dobravam a chance de se livrar da encrenca, mas ainda dependiam das bombas de interferon e rivabirina. Hoje temos uma nova geração de pílulas, os antivirais de ação direta, que dizimam o VHC em mais de 90% das vezes que são aplicados — e possuem reações adversas brandas.

“Não acho que houve, na Medicina, um período tão curto entre a descoberta de uma doença e a criação de tratamentos curativos na grande maioria dos casos”, contextualiza o hepatologista Raymundo Paraná, da Universidade Federal da Bahia, e autor do artigo História das Hepatites Virais.

Mais: com a multiplicação das terapias modernas, os azarados que não respondem bem a um combo de remédios têm à sua disposição outros para uma segunda tentativa de extirpar o vírus, o que catapulta o índice de cura para quase 100%. Chegamos ao ponto de Eric Bassetti, gerente médico da Gilead, uma das farmacêuticas que mais investiram em opções contra essa enfermidade, cravar: “A indústria nem está mais pesquisando novas drogas. Os tratamentos atuais são excepcionais, e não me refiro somente aos nossos”.

Com armas tão potentes, algumas disponíveis na rede pública, o governo lançou o Plano de Eliminação da Hepatite C. Baseado em uma proposta da Organização Mundial da Saúde, ele almeja reduzir o número de novas infecções em 90% até 2030 — em 2017, foram 24 460 episódios registrados. Ué, eliminar não significa zerar a quantidade de casos? “O plano visa eliminar a doença como um problema de saúde pública, e não erradicá-la, o que só seria possível se houvesse uma vacina”, esclarece Adele Benzaken, diretora do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde.

Como se pega o vírus da hepatite C, o que ele causa… e o contra-ataque

1) Esse inimigo invade o corpo pelo sangue contaminado. Um de seus destinos é o hepatócito, uma célula do fígado.

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2) Na sua nova casa, o vírus cria inúmeras cópias de si — e, no processo, destrói o hepatócito. Com os anos, e em silêncio, essas lesões no fígado provocam cirrose ou câncer.

3) As drogas atuais, ou a combinação de algumas delas, bloqueiam, de uma só vez, diferentes proteínas do agente infeccioso que permitem sua replicação. Sem se multiplicar, ele some do organismo.

O que o governo vai fazer quanto ao tratamento

Para cumprir seu objetivo, o governo pretende, de 2019 a 2024, tratar 50 mil vítimas da hepatite C por ano. De 2025 a 2030, seriam 32 mil tratamentos anuais.

E uma mudança recente promete democratizar mais o atendimento. Antes de março, o Sistema Público de Saúde (SUS) disponibilizava medicações somente para os indivíduos com a doença que tinham lesões hepáticas consideráveis. Agora, qualquer um que carregue o VHC no corpo poderá tomar os antivirais de ação direta logo de cara.

“É uma mudança essencial, porque os remédios eliminam o vírus, e não seus estragos”, diferencia o infectologista Alberto Chebabo, do SalomãoZoppi Diagnósticos. Pois é: se carrega muitas cicatrizes no fígado, uma pessoa talvez apresente complicações da hepatite C mesmo após estar curada.

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Aliás, está aí um motivo pelo qual o Ministério da Saúde também não prevê liquidar o número de mortes. A meta é diminuir a mortalidade em 65% até 2030. De 2000 a 2016, mais de 23 mil brasileiros faleceram em decorrência dessa moléstia — o que representa 75% dos óbitos por hepatites virais em geral. Resumindo: o uso dos fármacos nos quadros iniciais vai evitar sequelas e mortes.

Mas não é apenas por isso que seu acesso foi expandido. “Uma vez curado, o sujeito para de transmitir o vírus”, afirma Chebabo.

O desafio do diagnóstico

Porém, para trazerem esses benefícios, as pílulas modernas devem chegar a pacientes que, na maioria das vezes, desconhecem seu estado de saúde. Estimativas sustentam que, hoje, há 650 mil homens e mulheres por aqui com hepatite C. “Menos de 20% sabem disso. Nos países europeus, o índice está na casa dos 60, 70%”, compara Paraná.

Por quê? Ora, via de regra o fígado sofre calado por décadas antes de disparar sintomas como pele amarelada, náusea, escurecimento da urina… Portanto, só fazendo exames você terá certeza da presença (ou ausência) do mal.

“O maior desafio do plano de eliminação é o diagnóstico”, ressalta a hepatologista Maria Lucia Ferraz, da Universidade Federal de São Paulo. Não à toa, o ministério adquiriu, em 2017, 12 milhões de testes rápidos, em que gotas de sangue são colocadas num dispositivo descartável e o resultado sai em até uma hora. E projeta, de 2019 a 2030, encontrar 40 mil brasileiros por ano com a infecção.

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“Pretendemos simplificar o diagnóstico, definir as populações prioritárias a serem examinadas e ampliar a testagem”, conta Adele. Um foco é avaliar o pessoal acima de 40 anos, que viveu num mundo onde o compartilhamento de materiais contaminados era comum até nos hospitais. Abaixo, você vê os grupos que merecem atenção especial — mas, na verdade, todos ganham ao se testarem.

Quem deve fazer o exame contra hepatite C

Avaliar ao menos uma vez na vida se você tem:

  • 40 anos ou mais
  • Diabetes, transtornos psiquiátricos, doença hepática, algum problema renal ou déficits imunológicos
  • Histórico de transfusões de sangue ou órgãos até 1992
  • Tatuagens, especialmente se feitas em ambientes não regulamentados. O mesmo vale para piercings
  • Antecedente de exposição a material biológico contaminado (como sangue em seringas ou alicates de manicure não esterilizados)
  • Passado de uso de álcool ou drogas
  • Parceiro sexual com hepatite C. Ou se sua mãe possuía o vírus quando deu à luz ou amamentou

Examinar sempre se você:

  • Faz Profilaxia Pré-exposição (PrEP) contra o HIV
  • Contraiu HIV
  • É trabalhador do sexo
  • Tem múltiplos parceiros sexuais, ou se um carrega várias doenças sexualmente transmissíveis
  • É transexual
  • É homem e transa com outros homens
  • Utiliza álcool e outras drogas, principalmente injetáveis
  • Faz hemodiálise

Identificar os portadores da hepatite C é um assunto tão sério que o Conselho Federal de Medicina se posicionou em 2016. Ele recomenda que todo doutor, não importa a especialidade, converse com seus clientes sobre os exames para essa doença — e para sífilis, HIV e hepatite B. “Se os testes […] não tiverem sido realizados, o médico orientará o paciente, conforme o caso, sobre a necessidade […] de sua execução”, diz a norma. Isso aconteceu com você? Se não, cobre.

Quando o resultado do teste rápido é positivo

A confirmação do diagnóstico não envolve apenas esse teste. “Esse método identifica anticorpos produzidos pelo organismo contra a infecção, e não o vírus em si”, aponta Maria Lucia. Para entender melhor: a presença dessas unidades de defesa atesta que o VHC passeou pelo seu corpo, mas ele talvez tenha sido expulso logo após a invasão.

Segundo Raymundo Paraná, 50% das mulheres e 25% dos homens repelem a enfermidade sem remédios. Para saber se a hepatite se instalou, os médicos pedem um exame de sangue mais complexo e caro, que flagra o material genético do seu agente infeccioso.

Agora, mesmo se essa investigação acusar a doença, antes do tratamento ainda será necessário definir o tipo do VHC que infectou a pessoa (são seis genótipos, cada um com subcategorias), o grau de danos no fígado e por aí vai. “O processo leva seis meses ou menos”, informa Adele. Esse prazo refere-se ao setor público.

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E aqui reside um possível obstáculo. Por mais que essas avaliações tenham sido um pouco simplificadas — o exame de sorologia, uma espécie de confirmação do teste rápido, foi deixado de lado —, existe uma preocupação de o paciente se perder pelo caminho. Ele desistiria de seguir adiante no agendamento de uma análise laboratorial, na marcação de mais uma consulta no SUS…

“A passagem de uma dessas etapas para a próxima é falha. O indivíduo com uma doença assintomática precisa ser acompanhado de perto para não largar o tratamento mesmo antes de iniciá-lo”, opina Paraná. As autoridades alegam não haver evidências de que desistências venham a ocorrer.

Controvérsias dos tratamentos

Na linha das polêmicas, o governo começou a repensar o esquema terapêutico da hepatite C. A tendência é a de o SUS passar a ofertar um único combo de antivirais de ação direta — o daclatasvir com uma versão genérica do sofosbuvir — para todos os pacientes que nunca foram tratados, independentemente da subcategoria do vírus e das lesões hepáticas. No protocolo atual, são seis opções, escolhidas caso a caso. Uma, por exemplo, traz comodidade ao concentrar os princípios ativos em um só comprimido e ao encurtar o período de tratamento de 12 para oito semanas em certas situações.

Além disso, faz pouco tempo desembarcaram no Brasil fármacos que estão fora dessa diretriz e que são igualmente potentes contra todos os genótipos do VHC (a dupla sofosbuvir e daclatasvir é menos efetiva frente a um ou outro membro da família). “Esperávamos a incorporação das novas alternativas, e não a exclusão das que estavam à disposição”, lamenta o médico Sergio Cimerman, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia. Essa instituição enviou uma carta ao Ministério da Saúde pedindo esclarecimentos.

Adele responde à SAÚDE: “Está sendo elaborada uma revisão do protocolo de forma a subsidiar o plano de eliminação”. Ela seria, portanto, uma maneira de gastar menos com cada indivíduo — e, assim, pagar os tais 50 mil tratamentos por ano. Para complicar, há uma batalha jurídica envolvendo o tal sofosbuvir genérico, que pode complicar o acesso aos medicamentos.

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Quanto tudo isso afetará a qualidade do atendimento? Só os próximos anos vão responder. Diante do cenário que se desenha, outra pergunta vem à tona: quão realista é o tal plano? As respostas variam. “É uma meta bastante factível, embora desafiadora”, vislumbra Chebabo. Maria Lucia dá sua opinião: “Não é impossível, mas é difícil”. Já Paraná comenta: “Com a estrutura atual, não é realista”. Atingindo ou não os objetivos em 2030, o certo é que, hoje, a hepatite C tem adversários à altura.

As principais hepatites virais

Hepatite A: é transmitida por água e comida contaminada e por práticas sexuais que põem restos de fezes em contato com a boca. Os sintomas incluem febre, dor abdominal, icterícia… Seu vírus é expulso após um ou dois meses. Há vacina.

Hepatite B: também conta com um imunizante. Pode se tornar crônica e lesionar o fígado pra valer. Não há cura. O vírus dessa hepatite se espalha pelo sexo e quando sangue infectado acessa as artérias e veias.

Hepatite C: Uma vez que se instala, a protagonista da reportagem não vai embora sozinha. Apesar dos ótimos remédios, não possui vacina. O VHC passa eminentemente por meio do sangue, embora a via sexual seja outra possibilidade.

Hepatite D: É mais agressiva. Os episódios de hepatite fulminante, quando o fígado é destruído rapidamente, são menos raros. A boa notícia: ela só infecta alguém que carrega o vírus B (e é transmitida da mesma forma que ele).

O passado, o presente e o futuro da hepatite C

1975: de 5 a 10% de quem recebia transfusões de sangue desenvolvia uma infecção no fígado que não era ocasionada pelos vírus A ou B. Logo,
o problema foi batizado de hepatite não-A não-B.

1989: com técnicas genéticas, cientistas conseguem caracterizar o VHC pela primeira vez e, de quebra, criar o primeiro teste capaz de detectá-lo na circulação sanguínea.

1992: o Brasil começa a exigir que doadores de sangue passem por exames contra a hepatite C. Essa foi uma das políticas que mais evitaram novas infecções até o momento.

1993: a injeção de interferon, que estimula nossas defesas, entra em cena. Em 1999, chega a rivabirina. Juntas, elas asseguravam 40% de chance de cura e muitas reações adversas.

2002: É o ano da fundação do Programa Nacional de Hepatites Virais, que viria a se juntar com o de aids e outras DSTs. Três anos depois, é implantado um serviço de diagnóstico das hepatites B e C.

2013: o SUS oferece os remédios boceprevir e telaprevir, que praticamente dobram a chance de cura. Entretanto, eles ainda são empregados com interferon e rivabirina.

2018: o Ministério da Saúde garante antivirais de ação direta, mais eficazes e com menos efeitos colaterais, a todo brasileiro com hepatite C. E divulga seu plano para eliminar a doença até 2030.

2030: a promessa é ter testado todos os integrantes dos grupos prioritários, reduzido em 90% a quantidade de novos casos e aplacado em 65% a mortalidade por hepatite C. Será?

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