De tempos em tempos, um caso de gripe aviária identificado em humano faz soar um alerta sobre os potenciais riscos do vírus influenza para a saúde global.
Recentemente, foi a vez dos Estados Unidos. Por lá, uma pessoa do Texas foi infectada pela cepa H5N1, que tradicionalmente afeta animais. O paciente teve exposição a gado leiteiro supostamente infectado com vírus, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) do país.
O único sintoma relatado foi uma vermelhidão ocular, consistente com conjuntivite. O paciente recebeu tratamento com um antiviral para gripe, está em recuperação e foi orientado a permanecer em isolamento. Segundo o CDC, o episódio não altera a avaliação de risco para a saúde humana para o público em geral dos EUA, atualmente considerada como baixa.
“O que muda em relação a esse caso é que agora identificamos o vírus em espécies de produção animal, que são os bovinos e os caprinos o que, até então, não tinha sido observado previamente”, destaca a presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV) Helena Lage Ferreira, professora da Universidade de São Paulo (USP).
“Isso nos traz uma lição de que precisamos estar alerta aos parâmetros das diferentes produções animais, especialmente aqueles que são criados em ambientes livres porque o vírus pode estar presente na natureza a partir do momento em que ele tem circulado na população de fauna silvestre”, complementa a virologista.
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Diversas linhagens do vírus influenza que circulam entre animais no mundo têm capacidade para infectar pessoas. Em geral, o contágio ocorre a partir do contato direto com animais infectados ou ambientes contaminados.
Desde 2003 até o último mês de março, foram notificadas à Organização Mundial da Saúde (OMS) 888 infecções humanas pelo H5N1, com um total de 463 mortes pela doença.
A OMS esclarece que casos esporádicos são comuns e que os vírus recentemente identificados não são transmitidos facilmente de pessoa para pessoa – ao menos até esse momento.
No entanto, a agência das Nações Unidas (ONU) alerta que a circulação contínua do patógeno em aves é preocupante devido à alta capacidade de mutação genética, que pode levar ao surgimento de uma cepa mais contagiosa entre humanos.
“A evolução do influenza pode ocorrer pelo cruzamento de linhagens diferentes ou por mutações. Se a incidência aumenta, há maior risco de o vírus se adaptar para que passe a se transmitir entre seres humanos. A preocupação vem justamente disso”, alerta o virologista Fernando Spilki, pesquisador da Universidade Feevale, do Rio Grande do Sul.
O episódio mais recente que ilustra bem esse contexto ainda está fresco na memória: a pandemia de H1N1 que mexeu com as estruturas do mundo há exatos 15 anos.
“Um rearranjo entre amostras humanas, aviárias e suínas gerou uma nova cepa viral, que se estabeleceu na população e passou a ser transmitida de pessoa para pessoa. Em menos de três meses, todo o planeta já tinha sido tomado pelo evento”, explica o virologista Fernando Motta, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
A chamada transmissão sustentada, que consiste na livre circulação do micro-organismo e na alta capacidade de contágio entre indivíduos, é uma das principais preocupações da comunidade científica.
Quando falamos do vírus da gripe, esse é um ponto crucial: as suas alterações genéticas não são facilmente previsíveis. Nesse sentido, é difícil antecipar de maneira precisa o surgimento de uma nova linhagem com alta capacidade de infecção e transmissibilidade, por exemplo.
Mas, se não há como prever, como é possível mensurar o risco que estamos enfrentando? Para ajudar a montar esse quebra-cabeças, VEJA SAÚDE consultou alguns dos nomes mais relevantes quando o assunto é influenza no Brasil.
Grande cardápio
Para começar, é importante entender que o influenza sofre mutações frequentes. Isso faz com que haja uma ampla variedade em circulação no planeta. O virologista da Fiocruz explica que esse é um fator comum aos vírus de RNA.
“Eles contam com um mecanismo de replicação muito simples. Essas cópias geradas não passam por processos de revisão, fazendo com que, aleatoriamente, existam alterações pontuais que são introduzidas no material genético do vírus entre uma geração e outra”, detalha Motta.
As alterações podem ser pontuais, de modo que as novas versões sejam muito parecidas com as originais. Assim, podemos ter poucos impactos para o sistema imunológico dos indivíduos no reconhecimento da ameaça.
A questão é que essas derivações genéticas se acumulam com o passar do tempo. Nesse caso, o resultado pode ser uma dificuldade maior para a detecção do micróbio pelas nossas defesas. Por isso que uma pessoa pode ter gripe diversas vezes ao longo da vida – e é pela mesma razão que temos uma vacina atualizada a cada ano.
Os cientistas chamam esse fenômeno de “drift antigênico”, que costuma ser potencializado justamente no período do inverno, quando há um aumento da circulação viral devido às condições de sazonalidade e ao comportamento populacional que favorece a transmissão.
No entanto, essa é apenas uma das maneiras pelas quais o vilão da gripe vai ganhando novas caras. A outra, que recebe o nome de “shift antigênico”, consiste em uma transformação um pouco mais radical na estrutura do material genético a ponto de termos o surgimento de um novo subtipo.
Esse processo, fruto de um rearranjo entre fragmentos do genoma de vírus com diferentes origens, acontece durante a infecção simultânea de duas partículas virais em uma mesma célula. O resultado pode ser o despontar de uma nova variante com potencial pandêmico, como de fato ocorreu em 2009.
Aumento da circulação viral
Ao todo, existem quatro tipos de vírus influenza que são nomeados com letras que vão de A a D.
Os mais conhecidos, A e B estão por trás das epidemias sazonais pelo mundo. As outras duas versões apresentam impacto reduzido para a saúde pública: o tipo C infecta humanos e suínos, com menor frequência e quadros geralmente mais brandos, enquanto o D já foi isolado em bovinos e também em suínos, mas nunca detectado em pessoas.
O nosso protagonista, o influenza A, conta com duas proteínas essenciais para o processo de infecção, chamadas hemaglutinina e neuraminidase. Elas são tão importantes que dão o nome aos vírus que conhecemos. O H5N1, por exemplo, contém hemaglutinina subtipo 5 e neuraminidase subtipo 1.
A gripe aviária é causada por vírus de múltiplos subtipos. Além do famigerado H5N1, temos também em circulação outros como H5N6, H7N4, H7N9, H9N2 e H10N3.
Para nossa sorte, são associados a uma alta patogenicidade apenas alguns subtipos de H5 e de H7, que causam quadros graves e uma alta mortalidade entre os animais. A maior parte dos vírus da gripe aviária é atrelada a sintomas leves ou infecções que passam muitas vezes despercebidas.
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Desde 1996, quando foi identificado pela primeira vez na província de Guangdong, na China, o H5N1 apresentou momentos de altas de baixas. Em 2003, ele reaparece na China com mais força e se espalha por países da Ásia, causando surtos em aves de criação. Dois anos mais tarde, alcança países da África, do Oriente Médio e da Europa através de aves selvagens infectadas.
De 2014 a 2016, os rearranjos genéticos deram origem ao H5N6 e H5N8. Os subtipos vieram a se tornar predominantes no mundo entre 2018 e 2020. No ano seguinte, uma nova versão do H5N1 aparece no cenário, reivindicando o espaço que havia sido perdido e causando novos surtos em fazendas pelo mundo, provocando prejuízos para a pecuária.
O fato é que o vírus está circulando mais. “Ele vem acumulando modificações genéticas e, com isso, vem ficando mais transmissível entre as aves”, frisa a presidente da SBV.
“Hoje, uma ave silvestre precisa de uma carga viral menor para se infectar e consegue transmitir e excretar esse vírus no ambiente com uma carga alta. Isso mostra uma eficiência do vírus para se disseminar pelo ambiente, o que tem mudado o cenário nos últimos anos”, acrescenta.
Introdução no Brasil
O influenza pode viajar por longas distâncias a bordo de aves migratórias. A partir desse fluxo, é possível que o vírus seja introduzido em uma nova região ou país.
O Brasil não ficou de fora dessa. Em maio de 2023, foram diagnosticados os primeiros casos em aves silvestres por aqui. Desde então, o país registrou 160 focos em aves silvestres e de subsistência.
O termo “foco” descreve unidades epidemiológicas nas quais foi confirmado pelo menos uma infecção, de acordo com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). Ao todo, mais de 800 amostras suspeitas foram analisadas.
Consultado, o ministério afirmou que realiza iniciativas de prevenção e garantia da biossegurança, visando reduzir os riscos de disseminação da gripe aviária no país. Além disso, informou que medidas adicionais de monitoria são adotadas em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente (ICMBio e IBAMA) e o Ministério da Saúde.
“Como parte das medidas preventivas, o Mapa está atendendo as notificações de suspeita de influenza aviária em aves, com coleta de amostras para confirmação ou descarte de casos”, disse a pasta, em nota.
O ministério orienta a população a não tocar ou recolher aves doentes ou mortas. Para isso, deve ser acionado o serviço veterinário mais próximo. O Mapa enfatiza, ainda, que não há risco no consumo de carnes e ovos de aves ou qualquer produto de origem animal inspecionado no país.
Evolução
Se prever a emergência de um novo tipo de gripe altamente contagiosa é uma tarefa difícil, baixar a guarda não é nem de longe uma opção. Ainda que os rearranjos genéticos possam acontecer de maneira abrupta, contar com sistemas de vigilância robustos e operantes é a única forma que o mundo têm de se preparar.
Desde 1952, esse trabalho é conduzido através do Sistema Global de Vigilância e Resposta à Gripe (GISRS, em inglês) da OMS. Espalhado em instituições de 129 países, o programa inclui uma série de iniciativas, como o fomento à colaboração científica, o compartilhamento de dados e a preparação e resposta aos diferentes vírus.
O sistema é abastecido por dados provenientes de Centros Nacionais de Influenza (NICs, na sigla em inglês). No Brasil, são três laboratórios, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro, o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo e o Instituto Evandro Chagas, no Pará.
A virologista Marilda Siqueira, chefe do laboratório da Fiocruz, referência nacional na área, conta que o espaço recebe amostras de diversas unidades sentinelas associadas ao Ministério da Saúde.
“Desde 2003, o H5 têm evoluído. A cada vez que ele muda suas características genômicas de maneiras consideradas importantes, seja para a transmissibilidade ou para a entrada em células hospedeiras, são desenvolvidos protótipos de vacina em vários laboratórios”, afirma.
Em janeiro de 2023, por exemplo, o Instituto Butantan deu início ao desenvolvimento de uma possível vacina para humanos contra a gripe aviária. Os testes, conduzidos com cepas vacinais cedidas pela OMS, avançaram em maio, com a finalização de um lote piloto. Neste momento, os insumos são utilizados em testes pré-clínicos, ainda sem previsão de conclusão.
Os pesquisadores defendem o investimento no sistema de vigilância epidemiológica e laboratorial, o que, em última instância, permite acelerar a implementação de estratégias previstas no Plano Brasileiro de Preparação para Enfrentamento de uma Pandemia de Influenza.
Elaborado em 2005 e atualizado periodicamente, o documento reúne orientações voltadas a diferentes setores da sociedade, como ministérios de Estado, gestores e serviços de saúde, e até à população.
Quando se trata de vírus influenza, a emergência de uma nova pandemia é não considerada pelos cientistas como uma questão de “se”, mas “quando”.
“É essencial essa preparação que os países têm feito, com reuniões, grupos de trabalho e atualizações de manuais de procedimentos”, conclui Marilda.