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Coronavírus: “O Brasil transformou a crise sanitária em crise política”

O pneumologista Fred Fernandes faz uma análise sobre como a pandemia afetou as relações humanas, a produção de informações e a atuação dos governantes

Por André Biernath
Atualizado em 5 set 2020, 12h56 - Publicado em 22 Maio 2020, 10h25
coronavirus brasil
O pneumologista Fred Fernandes vê com preocupação os discursos desencontrados do governo brasileiro sobre o coronavírus. (Foto: Divulgação/SAÚDE é Vital)
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Não dá pra ignorar que a Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, trouxe diversos desdobramentos na saúde, na economia, na política e na sociedade. Vemos esses fatos todos os dias, estampados nas capas de jornais, ou em tempo real, nas milhares de mensagens e postagens que brotam pelas redes sociais. Esse rebuliço mudará para sempre nosso planeta: o mundo como conhecíamos até 2019 acabou. 

Esse foi um dos pontos da entrevista que a reportagem de VEJA SAÚDE realizou com o pneumologista Fred Fernandes, doutor em ciências médicas pela Universidade de São Paulo e atual presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia. Ao longo do conversa, o expert deu sua opinião sobre a crise e os possíveis caminhos para sairmos dela:

VEJA SAÚDE: você se lembra qual foi a primeira vez que ouviu falar desse novo coronavírus?

Fred Fernandes: isso é uma coisa curiosa… Lembro que, próximo do Natal de 2019, eu estava lendo alguns artigos sobre a pandemia de 1918. Daí estava conversando na minha casa e comentei com meus familiares: será que no próximo ano vamos viver uma nova pandemia? Naquela época já estavam saindo os primeiros relatos de uma pneumonia desconhecida lá na China. Mas era uma coisa incipiente e a gente não sabia no que ia dar. Essa é a memória mais antiga que tenho desse fato. 

E quando você começou a pensar que a situação poderia ser mais séria que o imaginado no início?

No começo de janeiro, quando apareceram mais casos, eu já fiquei preocupado. Principalmente com a informação de que a transmissão do vírus poderia ocorrer entre pacientes sem sintomas. Lembrei da epidemia de síndrome aguda respiratória grave (Sars), em 2003, quando eu estava entrando na pneumologia. À época, o que segurava a transmissão era isolar o caso. Mas quando soube que esse novo coronavírus passava de pessoa para pessoa numa fase assintomática, isso me gelou a espinha. Já dava pra ver ali que seria muito difícil brecar a pandemia. 

É curioso notar que, desde janeiro, a produção de informação sobre a Covid-19 é frenética. Isso vale para cientistas, jornalistas e, claro, indivíduos que produzem e compartilham informações falsas. Como lidar com essa infodemia?

O que eu acho interessante disso tudo é que, nos últimos anos, nós vivemos numa era de negacionismo da ciência. E precisamos fazer um mea culpa aqui: nós, da academia e da universidade, evitávamos a difusão de informações por meio das redes sociais por preciosismo. A gente mantinha o conhecimento nessa torre de marfim inacessível. A transmissão de informações ficou nas mãos de quem tinha más intenções, que usa a ciência de forma distorcida. Vemos agora algumas pessoas com responsabilidade, ética e compromisso com a verdade ganharem voz, o que é extremamente positivo. 

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Você é um desses que ganhou voz e tem utilizado as redes sociais para passar informações diretamente ao público. Como tem sido esse trabalho?

Essa é uma experiência nova na minha vida e está sendo desafiadora. Vejo muitos perfis que estão ali só para espalhar o ódio. E para esses não temos que dar voz. Por outro lado, tem muita gente com sede de conhecimento que interage de forma positiva e respeitosa. E o diálogo permite que todo mundo cresça e se desenvolva. Podemos mudar de opinião conforme conversamos com quem está disposto e aberto.

Essa atuação nas redes sociais também permite que se quebre aquela noção do cientista hollywoodiano, que tem as respostas para tudo e consegue resolver todos os problemas. A ciência não é isso. A ciência é a capacidade de fazer as perguntas certas e desenvolver um método para respondê-las. 

Ainda na linha da informação, vemos a produção do conhecimento em tempo real. Nunca saíram tantos estudos, tantas parcerias e tanto trabalho em equipe. Como você vê essa integração?

Ninguém vai conseguir acabar com a pandemia sozinho. Precisamos juntar os esforços da ciência básica, dos estudos de novos remédios e daqueles que estão na linha de frente, atendendo os pacientes nas UTIs. É essa troca de ideias que trará o progresso em relação a um remédio. Por enquanto, não temos essa solução. Nos resta dar o suporte na terapia intensiva para o paciente grave, tomando todas as precauções. E ainda teremos o desafio de reabilitar essas pessoas que ficaram internadas durante semanas, para que elas possam retomar suas aptidões físicas. 

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Nas primeiras semanas de pandemia, a Covid-19 foi caracterizada como uma doença pulmonar. Nos últimos tempos, os relatos de complicações nos rins, no coração e no cérebro se multiplicaram. É justo afirmar que falamos de uma condição sistêmica, que afeta várias partes do corpo?

Eu concordo absolutamente com isso. O vírus tem uma tendência de afetar os rins por exemplo. O paciente em estado grave pode desenvolver insuficiência renal até precisar de hemodiálise na UTI. A infecção também está relacionada a defeitos na coagulação do sangue, ninguém sabe exatamente porquê. O indivíduo apresenta coágulos em várias partes do organismo, o que pode provocar trombose nas pernas, embolia no pulmão, AVC e infarto. Além dessas questões, vemos que os indivíduos hospitalizados apresentam perda de massa muscular e fadiga crônica, mesmo depois de curados. É por isso que insisto na importância da abordagem multidisciplinar. Vamos precisar de infectologistas, pneumologistas, cardiologistas, nefrologistas, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos e diversos outros profissionais.

Vimos também experiências em tempo real sobre como responder à pandemia. Na sua opinião, quais países lidaram melhor com o coronavírus até o momento?

Na Europa, o exemplo positivo obtido em um país grande foi na Alemanha. Logo no início da pandemia, a chanceler Angela Merkel fez um pronunciamento e sempre entendeu a gravidade da situação. Em suas falas, buscou unir o povo, ressaltando a necessidade do isolamento social e de disponibilizar o acesso aos serviços de saúde. Ela mostrou para todos como uma liderança faz a diferença no combate ao vírus. Temos, claro, outras nações com ótimos resultados, como a Nova Zelândia e a Coreia do Sul. Em todos os casos bem-sucedidos, houve sempre uma atenção precoce e a valorização das medidas de contenção, testagem e rastreio dos pacientes. 

E o Brasil? Que análise você faz das ações feitas por aqui?

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A minha principal crítica é a falta de um alinhamento no discurso. Ao longo dos últimos meses, vimos o presidente falar uma coisa e os ministros da saúde, outra. O mesmo vale para os governadores. Como médico, tenho uma opinião formada do que precisa ser feito. Mas a população fica perdida. E isso diminui a eficácia das orientações. O Brasil transformou a crise sanitária numa crise política. Quando falamos do uso da cloroquina, por exemplo, isso não está baseado em evidência científica. Seus apoiadores querem mostrar ao povo que existe uma “bala de prata”, algo que possa servir de pretexto para uma falsa sensação de segurança. 

Particularmente no estado de São Paulo, tivemos muita coisa certa. O isolamento social foi precoce, logo quando a transmissão local do vírus foi detectada. Vimos a construção de hospitais de campanha para separar o fluxo de atendimento de casos suspeitos de coronavírus. De fato, isso foi positivo. Se o sistema de saúde paulista ainda não está sobrecarregado, isso se deve a essas medidas. 

Você citou a cloroquina. Como avaliar essa questão no atual momento?

Todo mundo que leu os artigos iniciais sobre o efeito dessa droga contra o coronavírus ficou esperançoso. Surgia a possibilidade de algo para usar na prática. Mas quando analisamos mais a fundo, ficou claro que os estudos eram de baixa qualidade. E conforme as pesquisas novas saíam, com mais rigor e critério, menor era o efeito da cloroquina. No atual momento, eu sou muito cético sobre o uso desse remédio contra a Covid-19. Na medicina, nós sempre tentamos identificar os pacientes de maior risco e tratá-los de forma agressiva. 

Tem muita gente advogando a favor da cloroquina logo na fase inicial e em indivíduos de baixo risco. Mas trata-se de uma medicação que traz efeitos colaterais conhecidos. E isso pode fazer mais mal que bem. Para usar uma droga de forma ampla assim como está proposto, precisaríamos de estudos de segurança muito rigorosos, que acompanham milhares de voluntários por anos. Fazer isso agora beira o irresponsável. Temos vários exemplos na história para indicar que isso não vai terminar bem. 

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Outro ponto polêmico que foi aventado recentemente: o isolamento vertical.

Isso é fantasioso. Em nenhum lugar do mundo deu certo: a gente tem o exemplo da Suécia ou do Reino Unido para comprovar isso. O que aconteceu nesses lugares foi um aumento repentino nos números de casos. Não tem como proteger aqueles de alto risco e deixar o restante das pessoas de baixo risco zanzando pela rua. Para ter ideia, a população metropolitana de São Paulo está na casa de 20 milhões de pessoas. Se a gente imaginar uma mortalidade por coronavírus de 0,5%, falamos da perda de 400 mil cidadãos. É muita gente! Não podemos achar que o controle do vírus virá assim. 

Então não é possível pensar em imunidade de rebanho com o coronavírus agora?

Nós temos visto estudos populacionais na França, na Espanha e nos Estados Unidos. Na Espanha, que foi bastante afetada, estima-se que 5% da população se infectou. É muito pouco para pensar numa imunidade de rebanho. Para garantir um bloqueio contra esse vírus, precisaríamos que mais de 60% da população já tivesse sido acometida. A abertura das atividades e do comércio precisará ser muito gradual e vamos ter de acostumar a um novo jeito de viver. Isso inclui usar máscaras, distanciar-se, evitar aglomerações… Tudo vai ter que ser incorporado em nossa rotina. Não adianta voltar àquela realidade que tínhamos em dezembro de 2019: é preciso pensar em novas relações humanas daqui para frente. 

Já é possível tirar algum aprendizado disso tudo? Ou ainda é cedo?

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Há algumas semanas, o Bill Gates publicou um artigo no The New England Journal of Medicine em que ele fala do desenvolvimento de vacinas. O que a gente precisa para as futuras pandemias é melhorar e muito a agilidade na pesquisa e na produção de vacinas. Nem sabemos qual será o agente infeccioso. Mas precisaremos criar um programa de contingência para identificar rapidamente quais são as vacinas ideais e conseguir produzi-las em larga escala. Isso até foi pensado lá nas epidemias de Sars e Mers, mas acabou ignorado. Sabíamos que teríamos uma pandemia mundial em breve. E, mesmo assim, a Covid-19 pegou todo mundo de calças curtas. É hora de aprender com isso e se preparar para o futuro. 

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