De tempos em tempos, surge um novo inimigo do coração. Sem exagero: é com frequência que deparamos com estudos apontando o elo entre hábitos, eventos e produtos por vezes inusitados e perigos pelas artérias. Uso de hormônios para ficar com o corpo sarado, poluição ambiental, péssimas noites de sono…
De fato, tudo isso conspira contra o peito. Porém, um mau elemento conhecido há décadas por semear a discórdia e plantar ataques cardíacos continua surfando na negligência ou no desconhecimento de boa parte da população. Ele próprio: o colesterol alto.
Trata-se de um dos maiores fatores de risco para a causa número 1 de mortes mundo afora, as doenças cardiovasculares. Ainda assim, mesmo com tanto médico defendendo cuidados dentro e fora dos consultórios, brecar o colesterol é uma distante realidade no Brasil, como acusam duas pesquisas recentes.
Uma delas, o Estudo Epidemiológico de Informações da Comunidade (Epico), tocado pela Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), revela que o colesterol é a condição menos controlada entre 7.724 pessoas avaliadas em postos de saúde de 32 municípios paulistas — todas elas com pelo menos um desequilíbrio capaz de levar a infartos e derrames.
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Apenas 14% desse público estava com os níveis dentro das metas. Um índice absurdamente baixo. A maioria dos pacientes eram mulheres, com idade média de 60 anos, e apresentava dois ou três fatores de risco cardiovascular, como diabetes e hipertensão. Ao redor de 70% conviviam com o colesterol alto; oito em cada dez estavam acima do peso.
A preocupação dos especialistas diante desses dados é que falamos muitas vezes de problemas silenciosos: tem gente que só descobre que o colesterol está na lua ao infartar.
Veja outros indicadores no gráfico abaixo.
De acordo com a cardiologista Maria Cristina Izar, uma das autoras do levantamento, evidências anteriores já vinham apontando que as taxas de mortalidade cardiovascular não caíram na última década no estado de São Paulo.
“Uma das explicações é a falta de controle sobre esses fatores de risco, como demonstrado pelo estudo Epico, e isso mesmo considerando que o SUS distribui gratuitamente medicamentos para colesterol alto, hipertensão e diabetes”, diz a médica, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Maria Cristina toca numa das grandes feridas dessa história: a falta de engajamento no tratamento. Ele abrange mudanças de hábito, como ajustes na alimentação e prática de exercícios físicos, e uso continuado de remédios sob prescrição.
Mas colesterol alto não dói, não sangra, nem se vê… Daí tanta gente ignorar que ele é uma inconveniente presença em sua vida ou, ciente disso, achar que dá para administrá-lo a fogo brando ou mesmo interromper a terapia receitada pelo médico.
O assunto é gravíssimo, inclusive porque diz respeito a sujeitos que, já tendo encarado um piripaque, ainda assim não aderem aos cuidados recomendados. Sim, mesmo esse grupo considerado de alto risco, por falta de noção, instrução ou proatividade, não leva o colesterol e seus comparsas tão a sério.
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É o que se pode tirar de conclusão de uma análise de dados de mais de 2 milhões de brasileiros, cujas informações foram colhidas por agentes comunitários de saúde. Ela descobriu que menos de 7% dos indivíduos que já haviam sofrido um infarto ou acidente vascular cerebral (AVC) tomam estatinas, remédios utilizados para baixar o colesterol e reduzir a propensão a um segundo evento catastrófico.
O trabalho, conduzido pela epHealth, a Novartis e o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, também constatou lacunas preocupantes no uso de medicamentos para afinar o sangue e frear a hipertensão, frequentemente indicados nesse contexto.
“Fiquei chocado com os achados”, diz o cardiologista Raul Dias dos Santos, um dos experts que assinam o estudo, publicado no periódico The Lancet Regional Health.
“É a primeira vez que conseguimos fazer uma pesquisa tão abrangente para avaliar se a população estava tomando os medicamentos que deveria e da forma adequada”, comenta Santos, que atua no Einstein e no Instituto do Coração (InCor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Dos 2 milhões de participantes, cerca de 35 mil haviam sofrido um ataque cardíaco ou AVC — um contingente que preencheria uma pequena cidade do interior do Brasil e corre um risco de quatro a seis vezes maior de encarar uma nova pane cardiovascular e morrer em função dela. E é aí que voltamos ao colesterol…
“O colesterol alto é a maior causa de infarto e uma das grandes razões por trás do AVC”, afirma Santos. Mas esse não é um beco sem saída. Quando se adotam hábitos mais saudáveis e o tratamento médico, há boas chances de as coisas entrarem no rumo.
“As estatinas, principais remédios utilizados para controlar os níveis no sangue, reduzem em 25% o risco de infarto, derrame ou morte”, expõe o professor de cardiologia. Falamos de uma categoria de comprimidos empregada há décadas, fartamente avaliada, barata e fornecida de graça pelo governo.
Ao paciente, cabe uma única tarefa: tomar todo santo dia. Contudo, essa incumbência nem sempre é tão singela.
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O mesmo trabalho sugere que questões como desigualdade social e falta de conscientização pesam no acesso e no engajamento ao tratamento. Não basta conseguir de graça; às vezes, o paciente precisa ser convencido a usar a medicação e a não suspendê-la pensando que está tudo bem.
Por fim, Santos acredita haver uma pitada de influência até das notícias falsas que circulam por aí. “As estatinas, por exemplo, revolucionaram a cardiologia e são uma terapia eficaz e segura, mas, mesmo assim, encontramos muita gente falando mal delas na internet, num movimento anticiência sem fundamento”, afirma.
Cerco e corpo fechados
Fila e indisponibilidade do remédio no postinho ou na farmácia, lapsos de memória, descrença na orientação do médico… Convenhamos que são vários os argumentos (ou desculpas) para deixar de lado remédios capazes de salvar vidas.
Porém, tanto as autoridades públicas e os profissionais de saúde como os principais interessados nessa história, os pacientes, precisam se mobilizar para reverter números tão alarmantes como os expostos por essas pesquisas.
Não é fácil mudar a rotina ou incorporar a disciplina que um tratamento exige — ainda mais quando é comum ter de engolir um punhado de pílulas de dia e/ou à noite. Mas a alternativa a isso, digamos, não é nada auspiciosa.
Outro ponto fundamental é manter os exames e as consultas em ordem. Isso porque não é raro que doses de medicamentos precisem ser ajustadas e formulações sejam trocadas ou mesmo adicionadas ao plano terapêutico.
Com o colesterol, se as estatinas e os ajustes no estilo de vida não seguram o rojão, médicos podem conjugar outros remédios, como a ezetimiba (que reduz a absorção do colesterol pelo corpo), e, nos casos mais complicados, injeções mensais ou quinzenais de um anticorpo monoclonal (o inibidor de PCSK9), que anula uma proteína decisiva para as taxas de colesterol permanecerem elevadas no organismo.
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A evolução dos fármacos para conter as doenças cardiovasculares é um dos mais fascinantes capítulos na história da medicina. Uma história sendo escrita e reescrita, que vira e mexe apresenta uma novidade em suas páginas.
Em matéria de colesterol, o último avanço é a aprovação no Brasil de uma terapia inédita para baixar os níveis. Ela age numa das principais vias bioquímicas a manter o colesterol nas alturas por meio de RNAs de interferência, moléculas que se intrometem nas células do fígado e mandam parar a fabricação da PCSK9, a proteína crítica para o LDL (vulgo colesterol ruim) seguir em alta no sangue.
Ou seja, a inclisirana, tal qual foi batizada a medicação do laboratório Novartis, atua corrigindo uma instrução genética. Veja como funciona o medicamento na imagem abaixo.
“É um medicamento potente, que chega a reduzir os níveis de LDL em 50%, em média”, afirma Santos. E essa terapia baseada em RNA tem um trunfo: funciona com injeções aplicadas apenas duas ou três vezes ao ano.
“Sua ação prolongada é outra grande vantagem em relação aos remédios atuais, que ou são tomados diariamente ou precisam ser administrados a cada 15 ou 30 dias”, avalia o cardiologista do InCor.
Mas, por ora, ela não é algo para todo mundo…
No futuro
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a indicação da inclisirana apenas a pacientes de alto risco cardíaco, que não conseguem controlar o colesterol com as estratégias tradicionais e já sofreram um infarto ou derrame.
Faz sentido, e é uma prática habitual na medicina, tendo em vista a oferta de outras drogas, bem mais em conta. A novidade também terá de provar, em estudos de longo prazo, que não reduz apenas o LDL, mas também infartos e outros reveses cardiovasculares — algo que as estatinas já demonstraram.
O acesso tampouco será, num primeiro momento, tão democrático. O valor da inclisirana está sendo definido, mas, fora do país, ela custa cerca de 30 mil reais por ano. E é impensável uma entrada logo de cara na lista do SUS.
De qualquer forma, a expectativa é que, à medida que as pesquisas progridam e esse mercado se expanda, a terapia de RNA possa beneficiar um maior número de pessoas que penam para domar o colesterol.
O bônus da classe é ser aplicada duas ou três vezes por ano, o que permitiria contornar o baixo engajamento em tratamentos diários, ainda que, nos testes clínicos, a inclisirana tenha sido administrada junto com as estatinas.
“Com injeções a cada seis meses, garantimos uma maior adesão, evitando que a pessoa se esqueça ou deixe de tomar a medicação na rotina”, observa a professora Maria Cristina.
Mas até para quem teme injeções há soluções à vista. A farmacêutica MSD anunciou o início da fase final de estudos com os primeiros inibidores da PCSK9 — sim, aquela proteína que permite ao colesterol seguir em disparada — em versão oral.
Hoje já existem opções injetáveis desse fármaco, um anticorpo monoclonal que, feito míssil teleguiado, mira precisamente as células do fígado que sintetizam a proteína. Com um comprimido tomado apenas uma vez ao dia, espera-se maior fidelidade do paciente.
Na etapa anterior de pesquisas, a formulação, ainda conhecida pela sigla MK-0616, mostrou-se bem tolerada e capaz de induzir uma queda significativa nos níveis de LDL. A nova rodada terá três ensaios clínicos globais que arregimentarão aproximadamente 17 mil pacientes.
Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos, que deverão incluir até mesmo terapias gênicas de dose única para indivíduos com alterações específicas no DNA que catapultam seu risco cardíaco.
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Enquanto o futuro não chega, a verdade nua e crua é que cada cidadão com colesterol alto tem de ser sensibilizado e empoderado para se defender dessa condição que chegou a ser apelidada pelos médicos americanos de silent killer — assassino silencioso, em bom português.
Não podemos nos dar ao luxo de esperar que ele se manifeste. Pelo bem do coração… e do corpo todo.
Décadas atrás, o cirurgião e fisiologista francês René Leriche (1879-1955) lavrou uma célebre frase: “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”.
Digamos que o desequilíbrio nas taxas de colesterol — e não só nelas, mas também nas de glicemia e pressão arterial — demole a totalidade dessa ideia, ainda que a gente não sinta desconfortos no momento presente.
Porém, é preciso pensar no amanhã… E, mesmo com todo o avanço da medicina, somos convocados a fazer nossa parte (veja como na imagem abaixo).
Isso implica seguir as prescrições médicas, manter o calendário de consultas e exames, movimentar-nos, comer de forma balanceada e tomar os comprimidos ou injeções projetados para nos poupar de dissabores amanhã ou depois.
Não adianta caçar novos culpados para os desafios à nossa frente quando um dos principais está alojado ali, bem debaixo do tapete das nossas artérias. É preciso botar mãos à obra nessa faxina com urgência. E não esquecer que ele, sempre ele, pode estar à espreita na circulação.