O que sabemos sobre a bebida de Madagascar que trataria o coronavírus
Sem evidências de eficácia, uma bebida com artemísia está sendo usada nessa ilha (e se espalhando pelo mundo) para a prevenção e o tratamento da Covid-19
Recentemente, o Instituto Malgaxe de Pesquisa Aplicada (IMRA), em Madagascar, criou uma bebida à base da planta artemísia (Artemisia annua). Seu nome é sugestivo: Covid-Organics. O próprio presidente do país, Andry Rajoelina, tem incentivado o consumo como forma de prevenir ou tratar o novo coronavírus (Sars-CoV-2). Acontece que não existem estudos que provem a eficácia de mais essa suposta cura — e abandonar as indicações médicas comprovadas pode ser um risco enorme.
A Covid-Organics está sendo distribuída na ilha africana em versão engarrafada ou como erva para fazer chá. Remessas do produto foram enviadas a outros países, como Guiné Equatorial, Guiné-Bissau, Níger e Tanzânia. Vamos entender essa história agora.
A relação entre a artemísia e o tratamento da Covid-19
Não é a primeira vez que a planta é utilizada contra infecções. O biólogo Luiz Gustavo de Almeida, da Universidade de São Paulo (USP), conta que, décadas atrás, uma espécie dela era empregada na China e no Vietnã, lugares onde a medicina tradicional tem mais força, para combater a malária.
“A artemísia possui uma molécula chamada de artemisinina, com potencial contra essa doença”, afirma o especialista. A farmacologista chinesa Youyou Tu publicou, em 1979, uma investigação demonstrando a ação dessa substância contra a espécie mais letal do parasita por trás da malária.
A descoberta e a criação de formas de produzir a artemisina em laboratório renderam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2015 à cientista. O composto é usado até hoje para enfrentar essa infecção.
Mesmo assim, não há provas de que um chá à base de artemísia seria útil contra a malária. Tenha em mente que, ao contrário de uma infusão natural, os remédios carregam uma concentração elevada e controlada de artemisina.
“Consumir uma substância isolada é diferente de utilizar a planta com todos os seus outros compostos, que muitas vezes até são perigosos”, alerta Almeida.
Mas o que tudo isso tem a ver com o coronavírus? Almeida acredita que a associação de um composto da artemísia com o tratamento da malária serviu de argumento para criar uma bebida que enfrentaria outra infecção: a Covid-19. Mas não há qualquer base científica que dê suporte a essa alegação.
Lembrando que a própria cloroquina começou a ser testada para tratar o coronavírus — com resultados insatisfatórios até o momento — por, entre outras coisas, funcionar contra a malária.
As supostas evidências da bebida de Madagascar contra o coronavírus
Segundo informações da agência de notícias AFP, no dia do lançamento da Covid-Organics, Rajoelina disse à imprensa que duas pessoas foram curadas com o chá em supostos testes. Em entrevista ao site da BBC, a chefe de gabinete do presidente, Lova Hasinirina Ranoromaro, acrescentou que essas avaliações foram realizadas em menos de 20 pessoas durante três semanas.
Ainda de acordo com a AFP, Charles Andrianjara, diretor geral do IMRA, defendeu que o tônico deve ser ingerido apenas como prevenção, mas que observações no dia a dia mostraram uma tendência de eficácia como remédio curativo. Esses testes, entretanto, não foram publicados para que especialistas pudessem avaliá-los.
Acima disso, as alegações dessas autoridades levam a enganos. Veja: a maioria das pessoas com coronavírus não morrerão. Ou seja, se você der água para pacientes infectados, a maioria irá se recuperar — e isso não significa que água cura a Covid-19.
“Por isso é preciso haver estudos controlados. As experiências reportadas em Madagascar não servem para a ciência e muito menos para que uma bebida faça parte de uma política pública”, pontua Almeida.
Demos uma olhada nos sites PubMed e ClinicalTrials, que agregam pesquisas publicadas em todo o mundo. Somente dois resultados relacionando a artemísia com o Sars-CoV-2 foram encontrados:
- Uma revisão de instituições coreanas e chinesas sobre o uso de fitoterápicos em crianças infectadas. Mas esse artigo só aborda quais plantas foram mais receitadas — não há dados sobre eficácia ou segurança. Os autores relatam que não são capazes de recomendar qualquer terapia.
- Um artigo escrito por cientistas paquistaneses que basicamente pede para a comunidade científica estudar a Artemisia annua como um possível tratamento da Covid-19.
Nenhum desses documentos foi escrito pelo Imra ou cita a bebida Covid-Organics. Mais importante do que isso, eles não preconizam a ingestão de um chá contra o novo coronavírus.
Após as declarações do presidente da ilha, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se posicionou a favor de estudar certos compostos empregados pela medicina tradicional. A entidade afirma que, desde que haja embasamento científico de segurança e eficácia, não vê problemas no uso de fitoterápicos. Mas esse não é o caso da Covid-Organics.
“A OMS está pagando um anúncio no Google para disseminar esse comunicado e impedir que a informação chegue limitada à população. É um esforço que vale a pena destacar”, comenta Almeida.
O Instituto Max Planck, na Alemanha, está conduzindo uma pesquisa para checar se é possível utilizar os extratos da artemísia no combate ao Sars-CoV-2. Por enquanto, o que nos resta é torcer por bons resultados e continuar aderindo às medidas comprovadamente eficazes na prevenção e no tratamento.