Academias francesas pedem o fim da homeopatia na saúde pública
Em artigo para Revista Questão de Ciência, um jornalista levanta os mais recentes golpes contra a homeopatia, que vem perdendo espaço na Europa e nos EUA
A notícia passou despercebida pela mídia brasileira, mas em 28 de março deste ano as Academias Nacionais Francesas de Medicina e Farmácia publicaram um comunicado conjunto condenando o gasto de dinheiro público em remédios homeopáticos, e também a existência de títulos acadêmicos em homeopatia em cursos superiores de suas áreas.
O texto afirma que a evidência científica mostra que a homeopatia é ineficaz, que seus princípios fundamentais são inválidos e que a prática não deveria ser ensinada em escolas de Medicina ou Farmácia, nem subsidiada pelo sistema público de seguridade social. As Academias Nacionais são órgãos consultivos e de assessoramento do governo francês.
Num aceno aos hábitos culturais franceses – a manifestação das Academias reconhece que mais de 70% da população acredita em homeopatia, e que mais de 40% dos médicos receitam preparados homeopáticos – o documento afirma que o uso de homeopatia “não viola a ética ou as boas práticas”, desde que não leve ao adiamento de um diagnóstico ou do início de uma terapia eficaz, e desde que o médico saiba que está prescrevendo um placebo “para ganhar tempo”, e nada mais. “Não é aceitável usar a homeopatia como uma ‘medicina alternativa’ em outras situações”, pontifica.
Ano passado, a ministra da Saúde francesa Agnès Buzyn havia declarado que, embora a homeopatia seja, provavelmente, apenas um placebo, ela é muito querida pelo povo francês e talvez não faça mal – motivos pelos quais poderia continuar a ser subsidiada pelo Estado. Alguns meses mais tarde, a Universidade de Lille anunciou que sua Faculdade de Medicina não ensinaria mais homeopatia.
A Alta Autoridade de Saúde da França, que avalia quais tratamentos médicos devem ser subsidiados com dinheiro público, prepara-se para publicar um relatório sobre homeopatia em junho.
O problema
O parecer das Academias é sucinto e objetivo em sua apresentação de motivos: “A homeopatia foi introduzida por Samuel Hahnemann no fim do século 18; ele postulou duas hipóteses: semelhante cura semelhante e alta diluição. A evidência científica não confirma nenhuma delas. Meta-análises rigorosas não são capazes de mostrar e efetividade de medicamentos homeopáticos”.
Desempacotando o parágrafo acima: a hipótese de que “semelhante cura semelhante” pressupõe que a substância que produz, numa pessoa saudável, sintomas parecidos aos da doença deve curar a doença. Hahnemann teve essa inspiração porque, ao tomar um remédio para malária enquanto saudável, sentiu-se febril.
Generalizando, o princípio permite deduzir que cafeína deve curar insônia, que laxantes podem curar diarreia ou que fragmentos do Muro de Berlim curam “ansiedade de separação”. Claro, dizendo assim, o absurdo torna-se patente. Para escapar do óbvio, adota-se o segundo princípio, o da alta diluição: que o poder de cura da substância é potencializado à medida que ela é diluída.
Mas as diluições homeopáticas desafiam as leis da física e da química. Elas são comumente descritas numa escala “C” (de centesimal) ou “CH” (centesimal hahnemanniana). Cada “C” representa uma proporção de 1 para 100 entre princípio ativo (o “remédio” propriamente) e solvente (quase sempre água). Uma diluição comum, de 30 C, configura uma gota de princípio em meio a 1000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000 gotas de água.
O número acima tem 60 zeros, e por brevidade costuma ser escrito como 10^60. Em comparação, o Sistema Solar contém cerca de 10^56 átomos. Ou seja, é mais fácil encontrar um átomo específico entre o Sol e Plutão do que um pingo de princípio ativo num remédio homeopático. Não existe técnica analítica conhecida capaz de distinguir entre homeopatia e água limpa.
Sem solução
Nada disso seria problema, no entanto, se a homeopatia funcionasse: talvez as diluições assustadoras preservem algum tipo de energia desconhecido pela ciência, mas capaz de se manifestar em benefícios para a saúde?
Aí chegamos à terceira parte daquela manifestação das Academias francesas: “Meta-análises rigorosas não são capazes de mostrar e efetividade de medicamentos homeopáticos”.
Meta-análise é um agregado de estudos conduzidos sobre determinada questão científica. Supondo que o verdadeiro efeito, por exemplo, de um tratamento médico seja o centro de um alvo, e que os estudos individuais a respeito sejam tiros de rifle apontados para esse centro, a meta-análise pressupõe que cada tiro sofre um tipo diferente de interferência – num caso o atirador não era muito bom, no outro o rifle puxava para a direita, no outro bateu um vento forte etc. Com isso, a meta-análise usa os diversos buracos de bala que aparecem no alvo para tentar inferir o verdadeiro centro.
A questão é que se há um viés sistemático no conjunto de estudos analisados – voltando à metáfora, se todos os atiradores são ruins e todos os rifles puxam para direita – o centro inferido pode estar a uma distância arbitrariamente grande do centro real. Por causa disso, as meta-análises mais rigorosas se concentram em estudos de alta qualidade metodológica.
Quando se conduzem meta-análises assim, a homeopatia, como constataram os franceses, sai de mãos abanando. Um exemplo claro é o do levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Pesquisa Médica da Austrália. Investigação conduzida pelo Parlamento Britânico também já havia chegado à mesma conclusão, assim como diversos estudos (como este e este).
O mundo… e o Brasil
A manifestação das academias francesas é apenas o mais recente golpe recebido pela homeopatia. Por causa da evidência científica de que a prática não tem efeitos específicos – isto é, que todo o “benefício” da homeopatia se reduz ao efeito placebo – em anos recentes esse tipo de tratamento deixou de ser coberto pelo sistema público de saúde da Inglaterra, o NHS; de ser recomendado pelos médicos da Austrália; foi alvo de advertência do sistema de proteção ao consumidor nos EUA; encontra-se sob duro ataque das autoridades de Saúde na Espanha.
No Brasil, o intenso lobby político das chamadas “Práticas Integrativas e Complementares” (PICs) de Saúde segue mantendo o país isolado da tendência internacional de abandono da homeopatia, e da adoção de políticas públicas em saúde recomendadas pela melhor evidência científica: a prática é reconhecida oficialmente pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e está incluída no Sistema Único de Saúde (SUS).
Uma curiosidade histórica: a homeopatia foi introduzida no Brasil graças à influência cultural da França, que predominava no país no século 19. O Dia Nacional da Homeopatia, celebrado em 21 de novembro, marca a chegada, ao nosso litoral, do homeopata francês Benoit-Jules Mure, considerado o introdutor da doutrina homeopática no Brasil.
*Autor deste texto, Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência. O conteúdo acima foi publicado originalmente nesse veículo.