A cidade de Marburg, na Alemanha, combina, como diversos centros universitários na Europa, fascínio histórico com o que há de mais avançado em ciência. A uma hora de trem de Frankfurt, Marburg viu florescer, ao redor de sua universidade fundada em 1527, institutos de pesquisa e instalações médicas de excelência, algumas pertencentes a grandes companhias farmacêuticas.
Há algumas décadas, esse campo de estudo era muito mais dependente do uso de animais em experimentos do que hoje em dia. E não estamos falando só de ratos e coelhos, mas também de primatas não humanos. Dentre esses últimos, uma espécie bastante popular nos laboratórios era o macaco verde africano, um animal pequeno e mais fácil de manter do que chimpanzés, por exemplo.
E onde é que se obtinham esses macacos? Era só ir até seu habitat natural, na África, capturá-los e enviar para onde eram esperados, o que era em si um negócio bem lucrativo.
Mas alguém mais pegava carona com esses macacos viajantes, alguém de nosso interesse aqui: os vírus!
Em 1967, cientistas de Marburg e de laboratórios similares na cidade de Belgrado, hoje na Sérvia, que trabalhavam com macacos trazidos de Uganda começaram a sentir sintomas “gripais” que evoluíram para hemorragias generalizadas. Muitos deles acabaram morrendo.
A investigação desses casos mostrou que o causador era um vírus até então desconhecido, que passou dos macacos para as pessoas e, em uma duvidosa homenagem, recebeu o nome de uma das cidades em que fora identificado. Era o vírus Marburg.
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Escalas pelo mundo
O vírus Marburg vive em diversos países da África Subsaariana, já tendo sido detectado em pessoas em Uganda, Angola, no Quênia, no Zimbábue e na República Democrática do Congo, por exemplo. Em 2023, foi a vez da Guiné Equatorial.
E quem são os hospedeiros naturais para esses vírus? Não são macacos. São morcegos! Já vimos algo parecido com a história da Covid-19, não?
Muitos dos surtos locais de Marburg estão ligados à entrada de pessoas em cavernas que abrigam morcegos e que acabam transmitindo o vírus pela urina e pelas fezes – elas entram em contato com mucosas e ferimentos na pele dos seres humanos.
Fora da África, casos de Marburg já ocorreram nos Estados Unidos e na Holanda, sempre em pessoas que viajaram para países endêmicos.
Esse vírus é bem econômico na sua “programação”, pois tem um genoma de RNA, guardado dentro de um envelope, que faz só sete diferentes proteínas, uma delas capaz de desligar nosso sistema imune. Mas a característica mais marcante é sua aparência: ele é como um fio de lã meio enovelado, e é isso que dá nome a seu grupo, os Filovírus, do latim fillum (filamento).
Um parente muito próximo dele é o famoso vírus Ebola, com quem o Marburg compartilha regiões geográficas e hospedeiros.
O vírus Marburg cresce em quase todos os órgãos nos corpos que os hospedam e se dá muito bem nas células que forram a parte interna dos vasos sanguíneos, o que acaba levando à perda desse forro e à temida hemorragia. Ele pode se transmitir de pessoa a pessoa por qualquer fluído corporal, mesmo após a morte.
E porcos também são suscetíveis e têm um papel na transmissão a seres humanos. Acho que já vimos algum parecido quando falamos de gripe por aqui, né?
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As manifestações da infecção
No começo, a pessoa infectada pelo Marburg tem febre, cansaço e até dor de garganta. Aí aparecem manchas vermelhas nas mucosas e na pele, caminhando para hemorragia generalizada por vômito e fezes e perda de sangue por nariz, boca e órgãos genitais. Tudo isso culmina em falência múltipla de órgãos e morte em quase 90% dos casos.
É assustador, e ainda não há um medicamento antiviral de eficácia aprovado contra a infecção. Hoje os médicos recorrem à reidratação rápida e cuidados intensivos. Se isso for feito a tempo, dá para salvar a vítima.
Ah, sim: também não há uma vacina contra o Marburg. E esse vírus é tão perigoso que só pode ser manipulado em laboratórios de nível de segurança 4, o maior nível existente.
Todas as características do vírus Marburg o fazem um candidato ideal para uma arma biológica. Não à toa, parte significativa das pesquisas com ele ocorre em instalações científicas militares.
Tá, mas dá para imaginar uma pandemia de Marburg? Talvez porque o vírus seja tão letal não dê tempo de uma pessoa transmiti-lo para outras. Já vimos algo parecido neste espaço quando falamos de raiva. Outro ponto: pessoas com o vírus ficam tão debilitadas que dificilmente vão sair por aí disseminando a doença. Os sintomas são tão evidentes e pesados que é impensável não procurar um hospital.
Mas essas características não são uma razão para desligarmos a vigilância sobre esse vírus, que voltou recentemente ao noticiário. Nem para deixarmos de explorar essa gigantesca matéria ainda escura na Virosfera.
Como coloca Laurie Garrett em seu livro A Próxima Peste, obra fundamental sobre a história das doenças infecciosas, os micróbios não vão se extinguir só porque os seres humanos decidem ignorá-los.