Por que cães e gatos não contam para a transmissão do novo coronavírus
Cães e gatos até podem hospedar coronavírus, mas não têm nenhum papel na disseminação da Covid-19. Entenda melhor essa história com o nosso colunista
Seu cão ou seu gato também convivem com alguns coronavírus, mas eles não gostam de compartilhar isso com ninguém. Desde o início da pandemia de Covid-19, ficamos sabendo de alguns casos de animais de estimação infectados pelo novo coronavírus, o Sars-CoV-2. Isso virou motivo para que injustamente eles também fossem apontados como transmissores do vírus, além de abandonados e mortos em algumas regiões do mundo.
Mas não faz sentido algum acusá-los. Para entender os porquês, precisamos realizar uma visita à intimidade dos vírus e entender seu ciclo de vida.
Para um vírus poder entrar em uma célula, ele precisa ter a chave certa. E essa chave, que são as proteínas na superfície dos vírus, tem que entrar na fechadura correta, os receptores que ficam na membrana celular. As células são, na verdade, casas com muitas portas e fechaduras diferentes. Alguns vírus têm chaves que abrem a fechadura de qualquer célula e de qualquer espécie de hospedeiro. Outros só possuem a chave para um certo tipo de célula e de uma única espécie de hospedeiro.
Uma vez entrando ali, o vírus precisa falar o idioma molecular das células. É assim que ele consegue dominá-las e escravizá-las para que se tornem fábricas de novos vírus, produzindo as proteínas que o agente infeccioso requer para montar seus descendentes. Se essa conversa não for afinada, mesmo que o vírus tenha a chave e entre, ele estará condenado ao insucesso.
Se tudo der certo até aqui, agora é hora de o vírus copiar seu genoma — como se fossem fotocópias dele. Mas, em se tratando de vírus como o coronavírus, as fotocópias não são muito fiéis ao original. De vez em quando, surgem algumas com pequenos erros. A nova ninhada viral acaba parecendo com um enxame onde a maioria das abelhas é de cópias idênticas enquanto o restante é um arco-íris de diversidade.
O que resta a esse enxame viral é pular de um hospedeiro a outro e começar todo o processo de novo, se as condições forem favoráveis, claro.
Acontece que o Sars-CoV-2 tem a chave perfeita (sua proteína de espícula) para as células humanas, além de conversar muito bem com as nossas células após ter invadido a casa. Ele é tão bem adaptado que se liga às nossas células com uma força vinte vezes maior do que seu primo, o Sars-CoV-1, da pandemia de Sars de 2002.
Então como explicar aqueles casos de cães e gatos — e até leões, tigres e um puma, estes em zoológicos — em que foram encontrados exemplares do Sars-CoV-2? Em todas essas situações, os animais estiveram próximos de pessoas excretando o coronavírus, estando elas doentes ou não, o que fez com que uma grande quantidade do vírus entrasse em contato com os bichos.
Assim, algumas daquelas fotocópias virais podem ter tido uma chave que se encaixava nos receptores de células desses animais, mas, como uma célula canina ou felina é um mundo muito diferente de uma célula humana, os poucos vírus que conseguiram entrar encontraram um ambiente tão inóspito que a aventura acabou aí. Ou seja, cães e gatos são hospedeiros raros e terminais para o Sars-CoV-2. E não o transmitem a pessoas.
Mas eles têm, sim, seus próprios coronavírus — só deles e que não passam para os seres humanos. O coronavírus canino e o felino são vírus “benignos”, que podem causar doenças brandas em filhotes ou mesmo passar desapercebidos. Mas, ao estilo de O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde, formas muito agressivas desses agentes infecciosos podem surgir às vezes e, aí, causar doenças letais nesses animais.
Na Natureza, nada é perfeito, mas só bom o suficiente. O coronavírus responsável pela Covid-19 tem agora em nós seu hospedeiro suficiente. Nós somos seu admirável mundo novo.