Pólio: um vírus marcado para a extinção (só que ainda não!)
Nosso colunista se debruça sobre a reemergência da poliomielite, doença infecciosa que pode ser evitada com vacina
Três doenças constam como ativas na lista de emergências globais da Organização Mundial da Saúde (OMS), todas elas causadas por vírus. Uma delas é a Covid-19, da qual nos lembramos todos os dias e com a qual ainda conviveremos por algum tempo em caráter pandêmico.
A outra é mais recente e apenas nos estamos familiarizando agora com ela: a varíola dos macacos, cujo rápido aumento de casos tem levado os sistemas de saúde a se preparar para diagnosticar, isolar e tratar os pacientes, ainda que a doença tenha baixa letalidade, ao menos fora da África, onde ela ocorre e é negligenciada há muito tempo.
Mas saber que a poliomielite completa esse trio de emergências de saúde chega a causar espanto. Os casos atualmente são raros e não vemos mais novos episódios marcados por um dos sinais mais drásticos da doença, a paralisia. Ainda assim, a pólio voltou a nos assombrar.
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Quem é esse vírus?
Às vezes, a nomenclatura de um micro-organismo ajuda a pintar um quadro de quem é ele. O vírus da poliomielite é um dos menores vírus conhecidos. Seu genoma é uma molécula de RNA e ele faz parte de uma família viral chamada Picornaviridae. Se desmontarmos esse palavrão para ver do que ele é feito, temos “pico”, que quer dizer “muito pequeno”, e “rna” que significa…RNA!
Ele é primo do vírus da febre aftosa, que acomete o gado, mas que não gosta de seres humanos para se hospedar, e também de vírus que causam resfriados na gente.
Os sintomas iniciais da infecção pelo poliovírus, o vírus que causa a poliomielite, são parecidos com os de um resfriado: dor de cabeça, febre, cansaço e dores musculares. A resolução é benigna na grande maioria das pessoas. Mas, a cada cem casos, um acaba em paralisia das pernas e, entre estes, alguns complicam com a paralisia dos músculos respiratórios, o que leva à morte por asfixia se o paciente não receber algum tipo de respiração mecânica pela vida toda.
Não há cura para a pólio nem para suas sequelas terríveis. Mas há vacinas. E de dois tipos. Quando falamos delas, pensamos automaticamente nas gotinhas das campanhas de vacinação infantil, que se consolidaram no Brasil e viraram exemplo para o mundo todo. Essas gotinhas tinham uma versão atenuada do poliovírus, um imunizante desenvolvido pelo médico americano de origem polonesa Albert Sabin.
O outro tipo de vacina é injetável via intramuscular e abriga o poliovírus morto. E a combinação dessas duas fórmulas, com a de vírus morto substituindo nos dias de hoje a de vírus vivo, levou quase à extinção da doença. O número de infecções anuais baixou de 350 mil em 1988 para seis (isso mesmo: 6) em 2021. A pólio andava restrita ao Paquistão e ao Afeganistão.
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Mudança, mutação, multiplicação
Mas por que deixamos as gotinhas de lado e trocamos a vacina de vírus vivo pela de vírus morto? Tem motivo. O poliovírus selvagem, responsável pela doença, entra no organismo via oral por contato direto com uma pessoa infectada ou através de água ou objeto contaminado. Ele se reproduz no intestino, sai de lá via fecal e recomeça o ciclo, buscando novos hospedeiros (naqueles casos mais graves, ele chega à medula espinhal, provocando a paralisia).
A vacina viral oral teve um papel inestimável em reduzir aos casos de pólio, não só pela sua eficiência, mas também por sua facilidade de aplicação, sem uso de agulhas e seringas. Só que o poliovírus atenuado também se replica bem no intestino, o que até servia para que esse vírus enfraquecido fosse transmitido pelas mesmas vias do selvagem e acabasse indiretamente “vacinando” mais pessoas.
Porém, vez ou outra, o poliovírus atenuado pode aprender a ser selvagem de novo quando está se multiplicando no intestino e, aí, as coisas se complicam. Isso não é um problema quando a vacinação em massa continua ocorrendo, uma vez que a vacina nos protege tanto do vírus selvagem quanto desse vírus vacinal que voltou a ser perigoso.
A questão é que nem todo mundo anda se vacinando. Uma demonstração dramática de como isso faz diferença ocorreu em junho de 2022, na cidade de Nova York, onde um adolescente foi diagnosticado com pólio pela cepa vacinal do vírus atenuado que sofreu uma mutação e retornou à forma virulenta. Um vírus encontrado nos esgotos da cidade americana.
A infecção só ocorreu devido à baixa adesão à vacina contra a pólio nos Estados Unidos. A vacina de vírus vivo, capaz de contaminar esgotos e causar a doença nos locais de cobertura vacinal aquém do desejável, já foi colocada fora de uso na maior parte do planeta, sendo substituída pela vacina de vírus morto, sem nenhuma capacidade de se replicar, se transformar e causar poliomielite.
Para quem não sabe, a pólio é uma doença horrível, e não acomete apenas crianças. Para ser erradicada, a vacinação em massa precisa continuar ocorrendo no mundo todo. Isso até o vírus encontrar seu último refúgio em alguém suscetível e ter sua linhagem extinta. Não é algo impensável: pode ocorrer em um amanhã bastante próximo.
Como disse Eleanor Roosevelt, diplomata e ativista dos direitos humanos que foi casada com Franklin Delano Roosevelt, presidente americano que provavelmente morreu por complicações da poliomielite durante a 2ª Guerra Mundial: “O mundo do futuro depende de nós o fazermos. O amanhã é agora”.