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Saúde é pop

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Tá na internet, tá na TV, tá nos livros... tá no nosso dia a dia. O jornalista André Bernardo mostra como fenômenos culturais e sociais mexem com a saúde — e vice-versa.
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Amor à música e 29 cirurgias: livro conta vida de João Carlos Martins

Obra do jornalista Jamil Chade recorda a vez em que o pianista quase cometeu suicídio. Um telefonema salvou sua vida.

Por André Bernardo
3 out 2024, 10h50
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  • De passagem por São Paulo, o compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi convidado pelo pianista José Kliass (1895-1970), um dos melhores professores do Brasil, para um almoço em sua casa. Durante o encontro, o anfitrião preparou uma surpresa: pediu a um de seus alunos que tocasse um concerto de autoria do próprio Villa-Lobos em sua homenagem.

    João Carlos Martins, então com dez anos, topou o desafio, mas, ousado como sempre, decidiu tocar a peça do seu jeito. Em vez de executá-la suavemente, injetou vigor em sua interpretação. “O que é isso?”, o professor entrou em pânico. “Você está tocando para o compositor!”. O aluno, porém, fingiu que não ouviu.

    Villa-Lobos, por sua vez, pediu para o rapaz continuar. Terminado o recital, o compositor tomou a palavra e disse: “Garoto, você é atrevido, mas admito que ficou melhor assim!”, elogiou.

    Quase 20 anos depois dessa história, Kliass impediu seu melhor aluno de cometer suicídio. Com dores insuportáveis na mão direita, tinha acabado de cancelar uma turnê inteira. “Que vida teria sem a música?”, não parava de pensar.

    O pianista estava na banheira de um hotel em Nova York, prestes a tirar a própria vida, quando o telefone tocou. Não ia atender o telefone, mas a insistência de quem estava do outro lado da linha o fez mudar de ideia. “João, você está com um problema na mão direita?”, perguntou Kliass.

    Sem esperar pela resposta, o professor russo citou uma série de compositores que escreveram obras para serem executadas apenas com a mão esquerda. “O importante é que você é músico”, enfatizou, antes de dar a conversa por encerrada. “E músico será até o final da vida!”. Ao desligar o telefone, o pianista já tinha desistido de se matar. Kliass morreu pouco depois, sem saber disso.

    Facetas complexas como essa da figura de Martins são destacadas no livro O Indomável: João Carlos Martins Entre Som e Silêncio (Record, 2024 – Clique para comprar), biografia escrita pelo jornalista Jamil Chade.

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    +Leia também: Quem quer ser um centenário?

    “De 100 em 100 anos aparece um pianista assim”

    João Carlos Martins, hoje com 84 anos, começou a tocar piano aos sete. Estudava uma média de oito horas por dia. Um ano depois, ganhou seu primeiro concurso. Aos 13, estreou profissionalmente no Brasil e, aos 18, no exterior.

    Na plateia lotada da sua primeira apresentação, no Teatro Colombo, em São Paulo convidados ilustres, como a pianista Magdalena Tagliaferro e o maestro Camargo Guarnieri. Durante duas horas, tocou de tudo: de Johann Sebastian Bach a Frédéric Chopin, passando por Claude Debussy e Franz Schubert.

    “Somente de 100 em 100 anos aparece um pianista assim”, elogiou a musicista Guiomar Novaes. Aos 21 anos, João Carlos se apresentou, pela primeira vez, no Carnegie Hall, em Nova York. Foi aplaudido de pé por oito minutos.

    Logo em sua estreia, algo chamou a atenção dos espectadores mais atentos: não havia partitura na estante. “Era capaz de memorizar uma página em poucos minutos”, avisa o jornalista Jamil Chade em O Indomável.

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    Quando criança, João pediu a uma colega de turma que lhe emprestasse o conteúdo que poderia cair numa prova de inglês. Cecília selecionou algumas folhas, entregou-as e sugeriu que estudasse para não ser reprovado na disciplina. Minutos depois, ele devolveu o material. “Já decorei”, agradeceu João.

    Cecília não acreditou: “Então, repita o que estava escrito!”, desafiou. E assim ele fez, para espanto de todos que ouviram a conversa. “Sempre tive uma memória privilegiada”, orgulha-se. “Mas, hoje em dia, tenho coisas mais importantes para fazer do que decorar partituras”, faz graça.

    +Leia tambémMario Sergio Cortella: “Quero mais vida. Mas não qualquer vida”

    Saúde frágil desde a infância

    Com apenas três anos, Martins começou a sofrer desmaios e convulsões. O pai cismava que era birra e lhe tascava beliscões. Aos seis, um cisto no pescoço expelia pus toda vez que se alimentava. Sofreu tanto bullying no colégio que, um dia, fez xixi nas calças.

    Aos 18, durante um recital no Theatro Municipal de São Paulo, não conseguiu voltar para o bis porque a mão direita começou a doer. Eram os primeiros sintomas de distonia focal, distúrbio neurológico que provoca contrações involuntárias e, no caso dos músicos, impossibilita a execução de seus instrumentos.

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    “A origem da distonia focal pode ser tanto genética quanto ambiental. O uso repetitivo de certos músculos aumenta o risco”, adverte o médico Murilo Martinez Marinho, mestre em Neurologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN). “O tratamento varia desde injeções de botox até procedimentos cirúrgicos, e apenas alivia os sintomas. Não há cura definitiva”.

    Aos 26, quase não conseguiu terminar um concerto na Alemanha. Foi levado às pressas para um hospital com apendicite supurada. Mal recebeu alta e precisou voltar para a emergência. Passou 15 dias entre a vida e a morte por causa de uma embolia pulmonar.

    A lista de infortúnios parece não ter fim. João Carlos tinha 25 anos quando, durante uma pelada no Central Park,  em Nova York, levou uma trombada de um zagueiro e, ao cair, uma pedra atingiu o nervo ulnar, na altura do cotovelo, que provocou a atrofia de três dedos.

    Trinta anos depois, durante uma tentativa de assalto na Bulgária, acertou um chute em um dos ladrões. Em compensação, foi golpeado na cabeça com uma barra de ferro. A lesão afetou sua fala. “Nos áureos tempos, tocava 21 notas por segundo. Hoje, toco uma nota em 21 segundos. Mas toco com a mesma emoção de antes”, garante o pianista que foi submetido a 29 cirurgias – 18 delas nas mãos.

    A luva biônica e o eterno retorno

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    (Luís França/Reprodução)
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    Em 2019, João Carlos Martins anunciou publicamente sua despedida do piano. Foi no programa Fantástico, da TV Globo. Naquele domingo, seu drama sensibilizou o designer industrial Ubiratan Bizarro Costa. De sua casa em São Paulo, ele bolou um jeito de ajudar o músico a desistir da aposentadoria.

    Depois de assistir a incontáveis vídeos no YouTube, criou o protótipo de uma luva extensora biônica. Feita de borracha sintética, hastes de aço flexíveis e placa de fibra de carbono, a órtese mantém abertos os dedos do pianista, flexionados por causa da distonia. “As hastes funcionam como molas”, explica Costa.

    “Quando ele pressiona as teclas para baixo, as hastes ‘empurram’ os dedos dele para cima”. Depois de alguns ajustes, Martins aprovou o invento: “Não chego perto do virtuoso que já fui um dia. Mas posso tocar peças importantes de Bach excepcionalmente bem”.

    Em maio do ano que vem, João Carlos voltará ao Carnegie Hall para seu último concerto como regente. No repertório, o alemão Johann Sebastian Bach, “sua especialidade e paixão”, nas palavras de Jamil Chade.

    Por que gosto tanto de Bach? Ora, ele é o Pelé da música clássica!”, compara. “Beethoven é, na melhor das hipóteses, o Maradona!”. Foi na casa de espetáculos de Nova York, aliás, que João Carlos realizou o mais emocionante de todos os seus quatro mil concertos – dois mil como pianista e dois mil como maestro.

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    Na noite de 24 de setembro de 1978, o local estava tão abarrotado de gente que seu empresário, Jay Hoffman, teve que colocar mais 300 cadeiras no palco. “Toda vez que eu entro num teatro, seja para tocar piano ou para reger uma orquestra, quero que o público saia de lá com uma lágrima nos olhos e um sorriso nos lábios”, emociona-se.

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