Quando recebi o convite para dar início a uma coluna em VEJA SAÚDE, ainda estava sob o impacto de ter recebido o Prêmio de Enfermagem Rainha Silvia da Suécia, que me colocou em lugar expressivo e privilegiado na comunidade de saúde internacional.
O convite também me fez rever minha trajetória de quase meio século de vida, e percebi que, ao resgatar minha história, muitas das experiências que vivi estão entrelaçadas a conquistas sociais em nosso país.
Ainda na infância, me lembro de acompanhar pela TV e vibrar com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Um marco que viria a estabelecer as bases de onde eu atuaria tempos depois, o Sistema Único de Saúde (SUS).
Desde cedo, ainda sem saber que nome dar a elas, sempre militei nas causas coletivas: na questão da desigualdade social, na luta da mulher por reconhecimento, na batalha por respeito à população negra.
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Muito cedo aprendi que o lugar onde brota a carência também é lugar de potência. Do mesmo barro de que é feita a miséria material e psíquica também é possível nascerem jardins de resiliência e prosperidade.
Por isso, após ler O Pacto da Branquitude (Companhia das Letras)*, de Cida Bento, ativista que acompanho desde a adolescência, aceitei o convite para dialogar com você sobre saúde, diversidade e igualdade.
Essa nova jornada me remete também a uma simbologia africana, um adinkra — uma espécie de conceito cultivado por povos da África Ocidental — chamado sankofa, que significa “volte e pegue”.
Então peguei… Peguei uma estrada retrô rumo a uma jornada ancestral feminina na história da humanidade e lá no início do mundo me encontrei com Lucy, nosso ancestral primitivo, fóssil de Australopithecus afarensis de 3,2 milhões de anos, descoberto no continente africano.
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E, então, imediatamente me perguntei: quais teriam sido os percalços vivenciados por essa e as mulheres negras descendentes dela diante das adversidades da natureza?
Andei alguns séculos para a frente e deparei com a história de minhas avós e bisavós, mulheres que viveram aproximadamente cerca de 100 a 140 anos atrás, entre os anos de 1883 e 1923, e que são contemporâneas de ícones da nossa história, como Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, e Maria Felipa de Oliveira, marisqueira que lutou pela independência da Bahia, dentre tantas outras anônimas que participaram da construção deste país.
Por meio de registros orais e escritos, compreendi que tais mulheres, apesar da aparência física tão desrespeitada pela sociedade daquela época, ainda que sempre descritas com certa robustez, também eram acometidas por fragilidades e patologias comuns.
Doenças que persistem a assombrar a mulher negra brasileira, como hipertensão, diabetes, pré-eclâmpsia, distúrbios renais, cânceres e transtornos mentais, sem falar no sofrimento psíquico e social decorrente de preconceito e situações de violência.
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No tempo das minhas antepassadas, não havia direito universal à saúde como agora, e essas mulheres atarefadas pela missão de proteger sua casa e família (crianças, homens e idosos) acabavam também negligenciando, sem saber, o autocuidado, o que contribuía para uma baixa expectativa e qualidade de vida.
Muita coisa mudou, mas nem tudo melhorou como deveria, mesmo que a gente tenha um sistema como o SUS e garantias asseguradas por lei.
Segundo o Ministério da Saúde, a expectativa de vida das mulheres negras aumentou, mas elas continuam padecendo de doenças crônicas e mazelas físicas e mentais e expostas a condições inadequadas de habitação, educação, transporte, emprego e renda, questões que determinam, claro, sua qualidade de vida.
Nem todas tiveram a “sorte” de, saindo do sul de Minas Gerais, poder vir para São Paulo, estudar e trabalhar para se tornar enfermeira — “sorte” que me consumiu muito suor e empenho, devo frisar.
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Assim, quando leio o cenário atual, não me espanto com achados científicos recentes que evidenciam, por exemplo, que mulheres negras sofrem mais para controlar o diabetes, ou relatórios como o da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) demonstrando que nosso grupo continue encarando índices preocupantes de saúde mental.
A história avança, mas nem tudo se transformou como deveria. Contudo, sou otimista. Acredito na saúde como conquista ao longo de um percurso histórico. Nesse sentido, a saúde da mulher negra passa pelos movimentos de luta pelos direitos sociais.
Passa por uma estrada aberta e mantida por protagonistas do movimento negro, como Sueli Carneiro, Instituto Geledés, Edna Rolan e Jurema Werneck, dentre tantos outros que contribuíram com a 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), iniciativa que foi um sopro de vida para o SUS, e aqueles que seguem atuando na construção de programas públicos, a exemplo da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que visa combater as desigualdades étnico-raciais, o racismo e a discriminação que tanto afetam o bem-estar dessa ampla fatia da população.
Aqui me irmano também com a comunidade LGBTQIA+, que ganhou uma política pública de saúde mais recentemente. Todos juntos, podemos vislumbrar que o conceito de saúde integral vire realidade mais democrática, com mais acesso e equidade de direitos.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram ser expressivo o número de domicílios brasileiros chefiados e sustentados por mulheres, muitas delas negras, muitas delas em condições de saúde longe do ideal.
O desafio, portanto, não é pequeno.
Em visita ao Egito, tive o privilégio de voltar ao passado e conhecer a história dos povos núbios, do reino de Kusch e das candases, rainhas negras com grande expressão política e liderança. Elas podem ser fonte de inspiração.
Assim como o ativista Martin Luther King Jr., com o qual compartilho um sonho: que a chama da justiça social se acenda e permaneça acesa em cada um de nós.
Que cada mulher negra conquiste a governança sobre sua própria saúde e, com as condições adequadas, ajude a lapidar uma sociedade mais respeitosa, igualitária e feliz. Axé!
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