No mês da Consciência Negra, um tema importante, que nos traz aqui, é a dor na população negra.
Neste momento histórico, com um aumento significativo na expectativa de vida da população mundial — e, portanto, de doenças crônicas incuráveis —, os cuidados paliativos emergem como uma abordagem fundamental.
O termo abrange a assistência oferecida a indivíduos com doenças graves e progressivas que ameaçam a continuidade da vida. Tais cuidados aprimoram a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares, e tem como objetivo principal não a cura da doença, mas sim o alívio dos sintomas, proporcionando conforto e suporte emocional, espiritual e psicológico.
Para que a população possa se beneficiar plenamente destes cuidados, é imperativo garantir a acessibilidade, compreendida como a capacidade de um indivíduo superar obstáculos que limitam sua participação social efetiva ou o acesso a determinados direitos, incluindo os serviços de saúde.
Esses obstáculos podem variar desde barreiras físicas, como a distância até centros especializados em cuidados paliativos, até barreiras financeiras, como os custos associados ao tratamento, e barreiras informacionais, como a falta de conhecimento sobre os serviços disponíveis.
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O acesso aos cuidados paliativos é influenciado por uma multiplicidade de fatores, por exemplo, a localização geográfica dos centros de saúde. Em relação à questão financeira, a Secretária de Saúde de São Paulo já disponibiliza Centros de Referência para o Tratamento da Dor Crônica, e a a acessibilidade à informação está relacionada ao nível de conhecimento da população sobre os serviços e direitos de saúde disponíveis.
Estes são imensos desafios para a população negra no Brasil, que enfrenta barreiras adicionais de acesso devido a fatores históricos e estruturais que perpetuam desigualdades no sistema de saúde. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra reconhece estas disparidades e enfatiza a necessidade de ações específicas para mitigá-las, tendo em vista o acesso limitado a serviços de saúde de qualidade, incluindo os cuidados paliativos.
Adicionalmente, o Atlas do Cuidado Paliativo no Brasil de 2019 evidencia uma distribuição desigual destes serviços, especialmente em regiões periféricas e rurais, onde reside uma parcela significativa da população negra. Um fator agravante são os estereótipos étnicos e raciais, que influenciam a percepção e o tratamento da dor.
A noção equivocada de que indivíduos negros têm maior tolerância à dor impacta diretamente o manejo adequado desta população, resultando em tratamentos inadequados ou insuficientes.
Esta situação é exacerbada pelo preconceito institucional, pela falta de capacitação dos profissionais de saúde em cuidados paliativos, além da escassez de conscientização da sociedade sobre estes cuidados. A confluência destes fatores contribui para a subutilização dos serviços de cuidados paliativos entre a população negra, intensificando o sofrimento destas pessoas.
Sabemos que muitos dos que se que encontram em situação paliativa enfrentam quadros frequentes de dor e, segundo o Atlas da Academia Nacional de Cuidados Paliativos de 2023, houve aumento de 54,7% de serviços do tipo, saltando de 106 em 2019 para 234 em 2022.
Destes, apenas 14 deles contam com a modalidade hospice (cuidados mais intensivos) e a grande maioria está no Sudeste (10). Apenas 2 estão no Nordeste, e nenhum no Norte ou Centro-Oeste.
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Discriminação racial no controle da dor
Eis uma preocupação crescente desde a década de 1990. Muitos estudos revelam que o racismo influencia no tratamento da dor, especialmente contra pacientes negros.
No contexto brasileiro, onde cerca de 40 milhões de pessoas morrem anualmente sem acesso adequado a cuidados paliativos, a situação é agravada pelo racismo estrutural, resultando em diagnósticos tardios, pior prognóstico e menor sobrevida em casos de doenças graves como câncer, mieloma múltiplo e até mesmo cardiopatias.
Embora os dados disponíveis sugiram um impacto significativo do racismo no controle da dor e no acesso a cuidados paliativos, a escassez de dados epidemiológicos robustos indica a necessidade de mais estudos para compreender plenamente essa questão. Mais do que isso, revelaa uma lacuna significativa no conhecimento e na prática médica neste campo.
Como parte do “pacote da realidade” das famílias negras, é preciso mencionar ainda que a combinação de falta de acesso, discriminação e maior vulnerabilidade socieconômica contribuem para piores indicadores de saúde nessa população, assim como óbitos precoces, maiores taxas de mortalidade materna e infantil, maior taxa de doenças infecciosas e altos níveis de violência.
Os cuidados paliativos estão essencialmente conectados com a percepção do doente como um sujeito complexo e digno de cuidados integrais, logo é por princípio e prática uma conduta humanizante. Ao seu revés, o racismo é uma técnica de desumanização.
Segundo Lélia González e Deividson Faustino, o racismo reside na negação total ou parcial da humanidade do negro e outros não-brancos e a racialização é um processo duplo: a formação do branco, endeusado e tomado como referencial do que é humano e universal, e a do negro, desumanizado e demonizado.
Quando paramos para refletir sobre o assunto, surgem as questões: Como alcançar cuidados paliativos de forma equitativa e socialmente justa para todos os usuários do SUS? Se o racismo nega a individualidade do negro em sofrimento psíquico, emocional e espiritual e físico, como interromper essa dor que também é social?
Florestan Fernandes descreveu que o negro permaneceu condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e isso se faz presente na tomada de decisões para o tratamento da dor. Esse descaso da assistência à população negra tem impacto negativo sobre a sua qualidade e desconsidera sua humanização.
Como é observável, são necessários mais estudos e pesquisas, que considerem determinantes raciais como critérios para o panorama dos cuidados paliativos no país, visando futuras intervenções nesta área, capazes de verdadeiro impacto na melhoria à assistência de saúde da população negra no Brasil.
*Celia Maria Francisco e Renata Laszlo Torres são enfermeiras e docentes do Centro Universitário São Camilo. O texto tem como coautores os estudantes de medicina Ana Carolina Izabel Menecucci, Beatriz Ettore do Valle Rocca, Fabricio Leal Albiero Aneas, João Alonso Mourão Alves, Marina Bravi Galate Campos dos Santos, Vinicius Soares Mendes, Ana Júlia Sanches Dias Pires, Carolina Fontenla Gil, Giulia Almeida Sauandag, Luiza Borrelli Ferreira Alves, Maria Isabella Figueiredo Garçon, Sofia Mendonça Lima Hadad, Camila Pagnam Amoroso Lima, Isabella Lourenço Campagna, Marcelo Augusto Almeida Gomes Junior, Maria Fernanda Pereira Gimenez, Sara Biavati e Vitor Lima Feltrin.