Pesquisas atestam que o tabagismo sofreu um boom durante a pandemia de Covid-19 no Brasil. A má notícia pode ser vista com certa naturalidade quando analisamos o cenário da crise sanitária mundial: está comprovado que o estado de espírito é um fator importante no aumento do consumo de cigarro e afins. Existem evidências sobre a relação entre sentimentos negativos e a vontade de fumar.
Um estudo da Fiocruz constatou que cerca de 33% dos fumantes brasileiros (que representam 12% da população) aumentaram o uso de cigarros durante a pandemia. Enquanto isso, 12% relataram fumar menos e 54% seguem fumando a mesma quantidade. A alta foi maior entre mulheres e indivíduos com ensino médio incompleto. O sentimento de isolamento, tristeza, depressão, ansiedade, medo, pior qualidade de sono e perda de rendimentos foram algumas das justificativas para o acréscimo na quantidade de cigarros consumidos.
Na Austrália, cuja prevalência de fumantes é similar à nossa (11%), não houve mudança radical nesse comportamento: entre aqueles que já fumam, apenas 6,9% aumentaram a quantidade de cigarros usados. Porém, ocorreram outras mudanças negativas entre os australianos, como diminuição da atividade física (48,9%), piora do sono (40,7%) e maior ingestão de álcool (26,6%).
Já na Itália, o tabagismo cresceu 9,1% desde o início da pandemia. Historicamente, tanto na Itália como nos Estados Unidos, há comprovações de maior consumo de tabaco durante recessões econômicas, também atribuídas a problemas financeiros.
Contraponto
Assim como para alguns a tensão promovida pelos efeitos da pandemia exacerbou maus hábitos, para outros a crise está levando a repensar rotas, incluindo se livrar de vícios. E o momento é propício: a combinação de cigarro e Covid-19 pode ser explosiva. Estatísticas apontam que quem fuma tem o dobro de chance de precisar de intubação, na comparação com quem não fuma. Isso acontece porque o tabaco inflama as mucosas das vias aéreas e prejudica os mecanismos de defesa do corpo, fazendo desse grupo um alvo fácil para infecções. E não podemos ignorar a devastação que o cigarro provoca no organismo a qualquer tempo: câncer de pulmão e doenças cardiovasculares e respiratórias estão aí para provar.
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Para quem decidiu apagar esse vício de vez, tenho um recado: essa luta não deve ser solitária. O tabagismo é uma doença com mais de cinco circuitos cerebrais envolvidos. Ninguém espera que um paciente com diabetes ou hipertensão se trate sozinho. Da mesma forma, um tabagista que busca uma solução definitiva para o seu problema irá precisar de tratamento e acompanhamento médico. Há estratégias terapêuticas específicas, com uso de remédios, que aumentam em até cinco vezes a chance de parar de fumar e minimizam a possibilidade de recaída precoce e ganho de peso, um dos medos de quem quer deixar o cigarro de lado.
Por isso estamos otimistas com uma técnica comportamental inédita desenvolvida por nossa equipe no InCor. Associada ao tratamento com o medicamento vareniclina, ela duplicou a chance de o paciente parar de fumar. A relevância do trabalho o habilitou a ser apresentado no Congresso da American Heart Association, em novembro de 2020, e já foi aceito para publicação no periódico Tobacco Cessation and Prevention no início deste ano, além de estar inscrito nos Temas Livres do Congresso SOCESP 2021, de 10 a 12 de junho.
Batizado de “fumar de castigo”, o método libera o paciente para fumar quando tiver vontade a partir do oitavo dia de uso da vareniclina, desde que cumpra algumas regras rígidas: fumar sozinho, em pé e olhando para a parede, sem distrações como celular, TV, alimentos ou bebidas. Trata-se de uma forma de dissociar o cigarro com atividades prazerosas. Para aqueles que optaram por deixar o tabaco, o “fumar de castigo” tem promovido mais adesão e continuidade.
Desde 15 de março de 2020, o Centro Especializado em Cessação Tabagismo, do InCor, ofereceu aos fumantes que procuravam tratamento a opção de atendimento remoto, mantendo a opção de consultas presenciais — todos os pacientes foram tratados com o mesmo protocolo. A principal diferença entre as modalidades foi a impossibilidade de realizar a medição de monóxido de carbono (monoximetria) nas teleconsultas para avaliar o consumo de cigarros e confirmar a cessação. Mas isso não invalida a terapia.
A taxa de sucesso do tratamento foi de 63,6% no grupo presencial e de 71,4% no online. Entre os pacientes que efetivamente iniciaram o processo, mas não conseguiram parar, o índice foi 9% no presencial e 14% no remoto. Já o percentual dos que pararam de fumar, mas recaíram antes de completar 52 semanas foi de 27% entre os que foram até o consultório e 14% pra os avaliados de forma online. Diante desses dados, podemos concluir que a efetividade do programa não foi prejudicada pela telemedicina, que foi a principal forma de tratamento durante a pandemia.
O Brasil já está no caminho certo, cumprindo as medidas indicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a redução do fumo. Graças às campanhas de saúde pública na última década, o número de fumantes brasileiros caiu 40%. Um relatório da OMS revela que, entre os 171 países que aderiram às medidas globais, apenas Brasil e Turquia implementaram diversas ações bem-sucedidas.
Mas ainda há muito a ser feito. Nossa intenção com o desenvolvimento do novo modelo é dissipar de vez essa fumaça para contabilizar apenas números crescentes de ex-fumantes.
*Jaqueline Scholz é cardiologista, assessora científica da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo – SOCESP, diretora do Programa de Tratamento do Tabagismo do INCOR (Hospital das Clínicas da USP).