Sofia, de 30 anos, estava com uma dor na perna há dois dias. Quando notou um inchaço importante na região, buscou uma avaliação no pronto-socorro. Seu pai a levou e foi indagado sobre os sintomas da filha, apesar de Sofia poder referir o que a incomodava.
O diagnóstico? Uma infecção de pele, chamada celulite bacteriana. O atestado? Aqui está: “Atesto para os devidos fins que a paciente deverá ser afastada do trabalho por problemas mentais”.
Faltou mencionar que Sofia possui síndrome de Down, uma condição genética que tem, entre suas características, deficiência intelectual. Mas qual a relação dessa síndrome, problemas mentais e a infecção de pele? Nenhuma.
Nesse atendimento, misturou-se deficiência intelectual com mental (quadro que faz parte de transtornos psiquiátricos) e colocou-se tudo isso antes da queixa do paciente que ali estava. A incapacidade de nomenclatura correta mostra o preconceito velado com o qual a medicina frequentemente enxerga o diferente.
Esses conceitos refletem também a forma como a própria sociedade enxerga essas pessoas, fazendo com que respingos de estereótipos se espalhem por todos os campos do cotidiano.
Deficiência não é falta de saúde, muito menos implica em sofrimento certo. Entretanto, muitos de nós fomos treinados a reconhecer a deficiência, como o próprio nome diz, no modelo do déficit. Nesses moldes, vê-se essas pessoas sempre com faltas e limitações – o que se estende para uma visão de que seriam doentes e insuficientes.
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Outro estereótipo comum envolvendo a síndrome de Down é que essas pessoas são “anjos” e “especiais”. Termos assim escondem a pena que muitos sentem, mas tentam amenizar ao adjetivar de forma positiva – e, até mesmo, superior.
É necessário tornar natural a diversidade humana, com suas diferenças motoras, cognitivas e sensoriais. Entender que todos temos dificuldades e habilidades, que somos únicos em nossa individualidade, faz parte da caminhada pela inclusão.
Dados da ONU (Organização Mundial da Saúde) estimam que em torno de 1 bilhão de pessoas no mundo tem algum tipo de deficiência. Se pensarmos que, ao longo da vida, qualquer um está sujeito a adquirir alguma deficiência, construir uma sociedade inclusiva diz respeito a todos nós.
O próprio processo de envelhecimento traz perdas de funções e déficits de interação com o restante do mundo. A deficiência não se trata, portanto, de ser mais ou menos especial. É apenas natural.
Muitos pensam também que todas as pessoas com síndrome de Down enfrentam as mesmas dificuldades e são eternas crianças, muito carinhosas. São apenas mais alguns rótulos. Essas ideias equivocadas são repetidas sem conhecimento dos avanços em saúde e inclusão atuais.
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Os cuidados com a saúde de quem tem síndrome de Down, estímulos adequados às suas necessidades e a luta pelo direito à educação fizeram com que, nas últimas décadas, muitos alcançassem o ensino em escolas regulares até seu término, o ingresso em escola superior, maior autonomia para sair sozinhos, dirigir carros, entre outros aspectos da vida cotidiana tidas como corriqueiras.
No último Dia Internacional da Síndrome de Down (21 de março), foi lançada a campanha “End the Stereotypes”, com título sugerido no Brasil de “Chega de Rótulos”.
A cada ano é escolhido um tema relacionado a autonomia, inclusão, capacitismo e independência, entre outros. O lema proposto pela FBASD (Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down) sugeriu: “são 7 bilhões de digitais diferentes ao redor do mundo. Por que, então, rotular algumas?”
Rótulos ou estereótipos reduzem o indivíduo a alguma característica, e geralmente escondem algum preconceito. Isso a partir de informações limitadas a respeito de uma condição.
Somos todos diferentes, com características únicas, habilidades e dificuldades, certo? Para as pessoas com síndrome de Down a vida se constrói com estas mesmas peças.
*Anna Dominguez Bohn é pediatra, especialista em síndrome de Down e vice-presidente do Núcleo de Estudos da Criança com Deficiência da Sociedade de Pediatria de São Paulo.