Passei os últimos dez dias no hospital, três deles na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com a minha mãe, que lutava contra um câncer de ovário há cinco anos. Sua jornada terminou ontem, após inúmeras internações.
Esses poucos dias me ensinaram mais do que os últimos cinco anos. Não foi a primeira vez em que fui acompanhante dela, mas foi a que mais me impactou, pois vi muito de perto seu contato com a morte.
Minha jornada de reflexão e aprendizado se intensificou quando uma copeira passou no leito e perguntou: “você é a acompanhante da Katia Regia?”
Assenti com a cabeça e ela me informou que levaria meu almoço para o quarto andar, onde havia um espaço dedicado a acompanhantes de UTI para as refeições.
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Eu não sabia que esse espaço existia e, quando cheguei no local indicado, me deparei com duas pessoas sentadas numa mesa tipo refeitório, dentro de uma pequena sala fechada. Logo chegou mais gente e o espaço se encheu de pessoas e histórias de UTI e de vida.
O primeiro era um acompanhante de um senhor que tinha tido um AVC e estava há dois anos na UTI. Falei: “dois anos na UTI?” Ele me respondeu: “dois anos é pouco! Tem gente que está há sete, que mora aqui.” Arregalei os olhos e me calei.
Do meu lado direito havia um homem de cinquenta e poucos anos, de barba longa, carioca, que falou que a história dele era positiva: “meu filho acaba de receber um transplante de rim. A nossa vida mudou com um telefonema”.
Celebrei genuinamente a alegria daquele pai e sorri para ele.
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Logo depois, chegou outra acompanhante, uma mulher de uns cinquenta anos. Perguntei sobre sua história e ela contou que seu pai havia vindo para a colocação de um stent, que tudo se complicou, e ele estava na UTI havia dois meses.
Ela me perguntou sobre o estado da minha mãe e eu disse que ela estava praticamente de partida, em função de uma complicação e de um câncer muito sério. Nesse momento, fui repreendida pela mulher: “você não pode falar isso. Para Deus, tudo é possível!”
E emendou: “ele falou para o cego: enxergue! E ele enxergou!”. Estava inconformada com a minha resposta. Naquele momento, me senti uma pessoa de pouca fé. Ao final do sermão, ela me pediu desculpas, justificando que não queria se exaltar.
O significado da morte
Essa meia hora de almoço coletivo me fez refletir profundamente sobre a morte e o significado que ela tem em nossa cultura.
Por que deixar uma pessoa presa a máquinas por anos e anos a fio? Estamos pensando em nosso conforto ou no conforto da pessoa? Qual o papel da culpa em nossa sociedade?
Não sei o que é certo ou errado, mas a reflexão é inevitável. A revolta da filha do pai com stent, os relatos de dois ou sete anos de pacientes na UTI são exemplos de como nos relacionamos com a morte. E o fato é: não nos relacionamos com a morte. A mera existência dela nos é apavorante.
As mensagens de condolência mais serenas e tranquilas que recebi pela partida da minha mãe foram da família do pai do meu filho. Eles são do México. Morei lá e sei que eles convivem bem com a ideia de morte.
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Morrer faz parte da vida. Na época de Finados, em algumas casas mexicanas há até o “altar de muerto”, em que a foto da pessoa amada que já partiu é colocada numa mesa, acompanhada de todas as coisas que ela gostava: a comida preferida, objetos pessoais ou qualquer coisa que lembre seus costumes em vida.
Cheguei até a ver cigarro num altar para um pai que era fumante. O “altar de muerto” fica montado por um tempo, que não sei dizer qual é, com a finalidade de receber durante esse período a visita da pessoa que morreu. Não há medo: há celebração.
Nesses últimos dias de hospital, com minha mãe num quadro praticamente irreversível, tivemos a sorte de ter uma médica de plantão que também era paliativista, a querida Dra. Farah, de quem recebi um conselho valioso.
Ela me disse: se você souber de qualquer pessoa que descubra um câncer ou uma doença grave, aconselhe a buscar um médico especialista em cuidados paliativos desde o início. Ele é confundido como um recurso para o fim da vida, conceito que está errado.
O que o cuidado paliativo oferece é outro olhar sobre o doente, não só para seu final: ele foca na jornada do paciente e trabalha para evitar o sofrimento psicológico e físico.
Minha mãe se foi ontem**. O velório estava lotado, ela estava linda, rodeada de amigos, parentes, filhos e do meu pai, que não soltou a sua mão durante toda a doença.
As últimas palavras que a vi sussurrar foi “muito amor”, reiterando que a nossa família era puro amor, muito amor. Seu semblante, já descansando, era de serenidade. Não tenho dúvidas de que ela está muito melhor agora.
*Renata Montenegro de Menezes tem 47 anos, é economista de formação, mas atua nas áreas de comunicação, marketing e locução
**Texto escrito em julho de 2023