Em 1909, o médico Carlos Chagas descobriu pela primeira vez o protozoário Trypanosoma cruzi no sangue de um ser humano. Era uma menina de 3 anos chamada Berenice, que estava em plena fase aguda da doença. Após 110 anos, a doença de Chagas ainda está longe de ser superada. Endêmica em 21 países da América Latina, ela afeta aproximadamente 6 milhões de pessoas no mundo.
Também conhecida como tripanossomíase americana, estamos falando de uma condição negligenciada e potencialmente fatal. Segundo estimativas, provoca 12 mil mortes por ano. E o problema vem crescendo nos últimos anos no Brasil, país com ao menos um milhão de infectados. O Ministério da Saúde afirma que o número de casos da doença na forma aguda mais do que triplicou de 2008 a 2017.
De acordo com o “Primeiro Relatório da OMS Sobre Doenças Tropicais Negligenciadas”, estima-se a perda de 752 mil dias de trabalho ao ano em decorrência de mortes pela doença na América Latina. É um gasto de 1,2 bilhão de dólares em produtividade perdida.
Só no Brasil, o absenteísmo de trabalhadores afetados pela doença de Chagas representa uma perda mínima estimada de 5,6 milhões de dólares por ano.
Na fase aguda inicial, os pacientes podem apresentar sintomas como inchaço no rosto e pernas, dor de cabeça, fraqueza e febre contínua. Na fase crônica, cerca de 30% dos infectados terá doença cardíaca ou digestiva. A cardiomiopatia chagásica é a manifestação mais crítica, sendo responsável pelo aumento de mortes devido a arritmias cardíacas ou insuficiência cardíaca progressiva, além de provocar acidente vascular cerebral (AVC).
Para combater a infecção, é preciso encarar a amplitude do quadro e atuar em diferentes frentes. Uma é o controle do inseto conhecido como barbeiro, seu vetor de transmissão, principalmente em residências.
Isso exige uma atuação pública, que promova campanhas de detecção e aplicação de inseticidas em áreas endêmicas, a exemplo do Norte do país. Como forma de prevenção individual, recomenda-se repelentes e roupas de mangas longas durante atividades noturnas em áreas de mata.
Contudo, o protozoário T. cruzi pode ser disseminado de outras maneiras. Transfusão de sangue, alimentos contaminados e o transplante de órgãos estão entre elas, o que torna mais complexa a erradicação. Aliás, destaco aqui a possiblidade de transmissão oral por meio da ingestão de comidas contaminadas, como açaí e caldo de cana.
Além de políticas públicas eficientes, a comunidade científica precisa investir esforços para aprimorar a compreensão da doença de Chagas, fomentando a produção de mais pesquisas. Precisamos de dados para análise da doença e de seu impacto social, além de novas formas de tratamento.
Alguns avanços nesse sentido já estão sendo realizados. É o caso do primeiro estudo que terá o Brasil e países da América Latina como palco para investigar um tratamento para insuficiência cardíaca em pacientes com doença de Chagas. Ele deve ser iniciado ainda em 2019.
A medicação sacubitril-valsartana, que se mostrou eficaz para pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida, será testada para o tratamento desse problema causado especificamente por doença de Chagas.
Por outro lado, necessitamos seguir firmes com programas já existentes, como o transplante cardíaco. Em 2018, o país realizou cerca de 380 procedimentos do tipo – é um número crescente a cada ano.
Apesar de centros de pesquisa brasileiros terem sido pioneiros no tratamento de pacientes chagásicos com insuficiência cardíaca crônica através do transplante, os números de procedimentos ainda são baixos em relação à população impactada.
Além disso, é preciso fomentar a capacitação de agentes de saúde. Segundo estudo recente desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz em parceria com a organização Médico Sem Fronteiras (MSF), apenas 32% dos profissionais entrevistados em Unidades Básicas de Saúde (UBS) conhecem os procedimentos de diagnóstico da doença e somente 14% sabem o tipo de medicamento indicado.
Estamos diante de um problema de saúde pública global. Como a população está conectada e viajando a diferentes cantos do mundo, a doença de Chagas passou a atingir cada vez mais locais não impactados pelo barbeiro. Exemplos: Estados Unidos, Canadá e países europeus.
É preciso ampliar os investimentos e os esforços coordenados, fortalecer programas públicos e do terceiro setor e contar com iniciativas privadas para o desenvolvimento de pesquisas e serviços de saúde se quisermos vencer a doença de Chagas.
*Dr. Edimar Alcides Bocchi é livre-docente em cardiologia e professor-associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), editor associado do JACC, e chefe da Unidade de Insuficiência Cardíaca do InCor-HCFMUSP