O questionamento que coloquei no título é mais um que nos assombra, entre tantos que a pandemia de Covid-19 nos trouxe. E já adianto que ele permanece sem uma resposta definitiva. Mas um estudo conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz, em parceria com a prefeitura de Niterói, no Rio de Janeiro, constatou que a média de amostras positivas para o Sars-CoV-2 da rede coletora de esgotos do município foi de 85%. Mas isso não significa que esses fragmentos virais teriam potencial de infecção, e a principal forma de transmissão continua sendo a inalação pelo ar de pessoa a pessoa.
De qualquer forma, os pesquisadores mundo afora conseguem isolar o Sars-CoV-2 das fezes e da urina de pessoas infectadas, demonstrando que a chamada transmissão feco-oral ainda não pode ser descartada. O vírus da Covid-19 pode sobreviver por algum tempo em um ambiente apropriado após sair do corpo humano.
Outro ponto de atenção refere-se aos profissionais da área de saneamento básico. Me refiro especialmente aos operadores que trabalham no monitoramento de resíduos industriais e urbanos, controlando o processo de tratamento de água, ou àqueles que realizam manutenção de redes coletoras. Ambos estão em contato diário com amostras de esgotos, e suspeita-se que a inalação de aerossóis desse material pode ser uma via de transmissão do vírus.
Salienta-se ainda que a deficiência na cobertura de coleta de esgotos no Brasil, com pouco mais de 60% da população que vive nas cidades sendo atendida, contribui diretamente para o aumento da poluição hídrica. Assim, estima-se um incremento na carga viral a ser despejada em rios, lagos, lagoas, mares e afins sem qualquer controle.
Quando há tratamento do esgoto, os métodos convencionais de desinfecção utilizados atualmente eliminam 90% dos vírus humanos gastrointestinais presentes. Entretanto, com relação ao Sars-CoV-2, ainda não existem respostas sobre processos ou tecnologias capazes de eliminar sua presença, uma vez que se trata de um agente infeccioso novo. Dentre os processos de desinfecção existentes, destaca-se a utilização de gás ozônio (O3), um potente agente oxidante, com ampla utilização em processos de tratamento de água e esgotos.
Em que pese o fato de a ciência estar consolidando cada vez mais dados sobre o Sars-CoV-2, ainda não existem informações seguras sobre os efeitos de sua presença em esgoto. Comparativamente à existência de outros organismos na água, em que o conhecimento é amplo e seguro, muito pouco se conhece sobre esse vírus, tanto do ponto de vista epidemiológico como técnico-sanitário de tratamento de esgotos.
No mais recente livro lançado pela editora Manole, Reúso de água potável como estratégia para a escassez (clique para comprar), há um capítulo dedicado ao tema, como forma de importante reflexão. Porém, torna-se necessária a realização de estudos mais abrangentes em relação ao coronavírus e à possível contaminação também por esgotos.
* Pedro Caetano Sanches Mancuso é professor doutor sênior do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), fundador e coordenador do Centro de Referência em Segurança da Água (CERSA) e consultor em Saneamento Ambiental.