O que a guerra na Ucrânia tem a dizer sobre a mente e a natureza humana
Partindo de uma correspondência entre Freud e Einstein sobre as guerras, psicólogo reflete sobre os instintos por trás delas e suas repercussões emocionais
Em 1931, o físico Albert Einstein escreve uma carta ao psicanalista Sigmund Freud a pedido da Liga das Nações. O cientista quer saber do médico se seria possível a humanidade se livrar das guerras. Na época, o mundo havia acabado de superar os horrores da Primeira Guerra Mundial e da pandemia da gripe espanhola.
Parcela considerável da opinião pública acreditava no esforço civilizatório pela paz. No entanto, uma nova guerra estouraria em menos de uma década da correspondência.
Não seria exagero supor que muita gente se faça o mesmo tipo de pergunta hoje em dia, diante da invasão russa na Ucrânia. Ainda mais se considerarmos as semelhanças entre esses dois momentos históricos.
A resposta de Freud a Einstein tornou-se um texto de enorme interesse para a psicanálise e para a humanidade, especialmente em períodos de grande tensão como o que estamos vivendo.
“Por que a guerra?” (clique aqui para comprar): foi como se chamou a carta escrita pelo pai da psicanálise ao homem que revolucionou a física. Nela, Freud se debruça sobre os segredos do funcionamento do nosso aparelho psíquico.
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Suas notícias e reflexões, entretanto, não eram otimistas. Na carta, Freud lembra que nosso instinto agressivo, herdado das nossas origens junto às feras, é algo inerente e necessário para a sobrevivência dos seres humanos. Sempre haverá a possibilidade de recorrermos à violência como uma resposta a determinada situação.
O desenvolvimento da cultura, nos conta Freud, permitiu o deslocamento do poder, que deixou o campo da violência e adentrou o campo do direito. Quando isso acontece, o poder deixa de estar na mão do mais forte e passa a pertencer à coletividade, que estabelece códigos para evitar que o mais forte volte a se tornar um tirano.
Mas o desenvolvimento da cultura não foi suficiente para eliminar do ser humano seu lado violento. O fortalecimento dos nossos instintos amorosos foi a grande conquista evolutiva da nossa espécie e, graças a eles, aprendemos a encontrar destinos e formatos adequados para lidar com a violência.
O avanço civilizatório pressupõe a capacidade de resolvermos nossas diferenças através de ideias e diálogos, não da força bruta. Mas esse avanço não é definitivo. A guerra, nesse sentido, é a expressão de uma regressão psíquica, civilizatória, ética e, também, estética.
Em sua carta, Freud faz um alerta importante ao lembrar que a cultura, ou a civilização, não representa a natureza humana. E a guerra na Ucrânia é mais um reflexo do descuido com que o nosso tempo trata das questões fundamentais para nós.
Em um momento marcado pelo esgotamento emocional que a pandemia de Covid-19 provocou na população mundial, o conflito na Europa nos remete a tantas outras guerras que vivemos, muito mais perto de nós. Os conflitos nas periferias brasileiras, onde sobretudo os negros são mortos diariamente; o genocídio dos grupos indígenas; o flagelo da fome, do desemprego e da fila do osso.
Tudo isso não nos deixa esquecer que em nosso próprio país a vida também tem sido violentamente posta em segundo plano.
Como indivíduos, todos nós temos razões para sermos pacifistas. Sejam biológicas, pois nosso corpo não foi feito para suportar a brutalidade da guerra, sejam psicológicas, pois ainda que sobreviva o corpo, a mente padecerá.
Não é porque a presença dos nossos instintos agressivos não foi eliminada pela evolução cultural que temos desculpas para fazermos a guerra. Pelo contrário, é justamente porque temos uma tendência à agressividade que devemos ser pacifistas e repudiar toda e qualquer guerra.
É porque podemos ser violentos que precisamos, todos os dias, reafirmar os princípios da vida, da cultura e da civilização.
* Francisco Nogueira é psicólogo e psicanalista e membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo